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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

FERNANDO PESSOA

(1888 – 1935)

 

 

Nasceu em Lisboa, capital de Portugal, em 13 de Junho de 1888. Seu nome está relacionado com Santo Antônio, que tinha o nome de Fernando de Bulhões. Passa grande parte da infância em Durban, onde recebe educação britânica, e, por isso, têm contato, logo cedo, com autores de língua inglesa (Shakespeare, Edgar Allan Poe, John Milton, Lord Byron, John Keats, Shelley, Tennyson, entre outros). O inglês teve grande destaque em sua vida. Trabalha com ele quando se torna correspondente comercial em Lisboa, além de utiliza-lo em alguns de seus escritos e traduzir trabalhos de poetas ingleses, como “O Corvo” (The Raven) e “Annabel Lee” de Edgar Allan Poe. Em vida, publicaria apenas o livro Mensagem e as coletâneas de poemas em inglês (Antinous, 35 Sonnets e English Poems I, II e III). Depois de retornar a Portugal, ainda viaja só à África do Sul. Em 1906 matricula-se no curso superior de Letras da Universidade de Lisboa, curso que abandona sem nem completar o primeiro ano. É nesta época que entra em contato com importantes escritores literatura da língua portuguesa. Se interessa pela obra de Cesário Verde e pelos sermões do Padre Antônio Vieira. Seus pais voltam para Durban e Fernando começa a viver com a avó. Esta morre um tempo depois e lhe deixa uma pequena herança. Passa a se dedicar à tradução de correspondência comercial em um trabalho que poderíamos chamar de “correspondente estrangeiro”. Nessa profissão trabalha a vida toda. É internado no dia 29 de Novembro de 1935, no Hospital de São Luís dos Franceses, vítima de uma crise hepática, se tratando aparentemente de uma cirrose provocada pelo excesso de álcool. No dia 30 de Novembro morre aos 47 anos. Nos últimos momentos da sua vida pede os óculos e clama pelos seus heterónimos. Sua última frase é escrita no idioma no qual foi educado, o inglês: I know not what tomorrow will bring (”Eu não sei o que o amanhã trará”).

Usou vários heterônimos para escrever seus poemas (Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos) e suas prosas (Bernardo Soares). Hoje, certamente, é o poeta de língua portuguesa mais lido e mais amado por todos os segmentos de leitores. E também por todos os segmentos da crítica. Harold Bloom inclui Fernando Pessoa no cânone da poesia universal, no que — certamente — é incontestável. 

[Página preparada por Salomão Sousa]

 

Segundo Badiou, o pensador-poeta Fernando Pessoa constitui um pensamento-poema. Para ele, Pessoa coloca em xeque o pensamento filosófico ao fazer do problema da harmonia desorganizada dos contrários sua questão primeira. Pessoa subverte a metafísica ao caracterizá-la como uma

física (o sobrenatural é o natural náo explicado; a realidade das

coisas não garante coisa alguma; o desassossego é uma forma de impermanência na ataraxia).” (CASTRO, Gustavo de; DRAVET, Florence. Comunicação e Poesia: itinerários do aberto e da transparência. Brasília: Editora UnB, 2014, p. 36)

 

 

Extraído de: LEVE COMO UM BEIJA-FLOR.   São Paulo, SP: Laboratórios Wyeth-Whytehall Ltda, s.d.  64 p.  25,5X25 cm. Produzido por Segmento Farma. Fotos de beija-flores por Haroldo Palo Jr. Versos dos poetas Adélia Prado, Amadeu Amaral, Cecilia Meireles, Cora Coralina, Fernando Pessoa, Flavio Venturini Márcio Borges, Joyce Ana Terra, Judith Nunes Pires, Luis de Camões, Lupe Cotrim,  Nelson Angelo, Nelson Motta Rubens Queiroz, Olga Savary, Therezinha Guerra Del Picchia e Vinicius de Moraes.  “ Adélia Prado “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Veja também:  O CORVO, poema de EDGAR ALLAN POE, em tradução de FERNANDO PESSOA.


 

TEXTOS EM PORTUGUÊS   /  TEXTOS EM ESPAÑOL

 

“o que em mim sente
está pensando”
F.P.

 

PESSOA, Fernando.   O Poeta Fingidor.   Apresentação Claufe Rodrigues.  Prefácio Carlos Felipe Moisés.   São Paulo, SP: Globo, 2009.  ISBN 978-85-250-4675-8  96 p.  14x21,5 cm.  ilus.  capa dura   Inclui DVD dos 120 anos do nascimento do poeta.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 


 

À minha querida mamã

 

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci,
Por muito que goste delas,
Ainda gosto mais de ti.

 

 

Breve resenha de

Fernando Pessoa
LIVRO DE VIAGEM
com Fernando Pessoa viajam
Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares.
Lisboa: Guerra & Paz, 2009
152 p.  ilus.  (Col. Três sinais)
ISBN  978-989-8174-47-5

        

 

"Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário", diz-nos Fernando Pessoa, divisando vastidões do imaginário transtornado. Em um cais metafórico, onírico, masoquista. Há vários Pessoas além de seus heterônimos!!!  Além daquele telúrico e heróico (à sua maneira...) Mensagem, sanguineo, com raízes no Tempo.  Um Pessoa que diz pensar sem pensamentos em seu recolhimento celibatário e libidinoso. Aquele delirante  e versidesviante Livro do Desassosego, ou, mais fractal e caleidoscópico, seu Livro de Viagem: no cais, diante de uma paisagem marítima no espaço-tempo inconsútil, perversa, tonitruante. Verborrágico — as palavras não cabem no verso, sobrepassam as linhas, as ideias extrapolam os sentidos! Deixa de ser um filósofo-poeta para converter-se em ditirambo surreal, agônico, "Um Deus monstruoso e satânico, um Deus de panteísmo de sangue" para verter-se em agudas transfigurações , em que encarna piratas, demônios: "Eu senti tudo isso — todas estas coisas duma só vez — pela espinha!"  E "Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles".  "Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!"


         São versos da coletânea temática Livro de Viagem, em que "com Fernando Pessoa viajam Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares", os eus do grande poeta português.


         O livro chegou a algumas (raras) livrarias do Brasil, em edição esmerada, capa dura, com poemas de várias épocas, vários estilos, a começar pelo longuíssimo poema de Álvaro de Campos "Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir" a que nos referimos nas linhas iniciais. A seguir, uns brevíssimos trechos do poema, a guisa de ilustração do que dissemos:



Ah, seja como for, seja para onde for, partir!

Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.

Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,

Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,

Levado, como a poeira, pios ventos, pios vendavais!

Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!

Todo o meu corpo atira-se prà frente!

Galgo pia minha imaginação fora em torrentes!

Atropelo-me, rujo, precipito-me

Estoiram em espuma as minhas ânsias

E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!

 

Pensando nisto — ó raiva! pensando nisto — ó fúria!

Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,

Subitamente, tremulamente extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo de minha imaginação.
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estridente vida marítima. 

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OUTROS POEMAS, OUTROS LIVROS...
 

 

POEMA EM LINHA RETA

 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

 

 

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha quer não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.

***


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

 

***

 

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor
Se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu
Tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor,
Se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca
Escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas...

 

 

CANCIONEIRO

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relêvo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

 

 

OPIÁRIO

 

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola


Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,


já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida


E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos


Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,

Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.

Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde -

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma.

A minha Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co’a sueca… e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O fato é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranqüilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um gênero de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.

Qu’ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.

Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,

A mim e à minha vida… Ora! um rapaz…
O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica

Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.

A minha vida mude-a Deus ou finde-a…

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,

Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída

Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —

E basta de comédias na minh’alma!

 

 

TABACARIA

 

 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.

0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.

 

 

 

Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

 

 

AUTOPSICOGRAFIA

 

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

 

 

 

 

PESSOA, Fernando.  Rebanho.  Ilustrado por Lucvi Sciascia Cruz.  São Paulo: Massao Ohno          Editor, 2000.   s.p.  ilus. col. capa dura.   

 

  

 

[ PESSOA, Fernando ]  MOISÉS, Carlos Felipe. Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos.  São Paulo: Escrituras, 2005.  231 p.  “ Carlos Felipe Moisés “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

[XXX]

 

Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.

Para ti tudo tem um sentido velado.

Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.

O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.

Para mim, graças a ter olhos só para ver,

Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;

Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.

Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.

 

 

[XXXI]

 

Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas —

Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?

A paz que sinto quando te vejo, pertence-me ou pertence-te?

Não, nem a ti nem a mim, pastor.

Pertence só à felicidade e à paz.

Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.

Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.

Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,

Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas noutra cousa
     indiferentemente,

E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.

 

 

[XXXII]

 

Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo

Passa um momento uma figura de homem.

Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,

Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:

O "homem" vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro,

E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.

Olho-o de longe sem opinião nenhuma.

Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,

A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,

Mas-músculos e, a maneira certa e impessoal de os usar.

 

 

[ PESSOA, Fernando ] Poemas completos de Alberto Caieiro.  Apresentação, organização, notas e comentários críticos Carlos Felipe Moisés.  São Paulo: Ática, 2013.  160 P.  (Bom Livro) ISBN 978-85-08-16419-6  14x21,5 cm.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

XXVII

 

Só a Natureza é divina, e ela não é divina...

 

Se às vezes falo dela como de um ente

E que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens

Que dá personalidade às cousas,

E impõe nome às cousas.

 

Mas as cousas não têm nome nem personalidade:

Existem, e o céu é grande e a terra larga,

E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.

E isso tudo que verdadeiramente sou.

Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.

 

 

XXVIII

 

Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.

 

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.

 

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.

 

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.

 

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.     .

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

 

Graças á Deus que as pedras são só pedras,

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.

 

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza.

 

 

XXIX

 

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.

Mudo, mas não mudo muito.

A cor das flores não é a mesma ao sol

Do que quando uma nuvem passa

Ou quando entra a noite

E as flores são cor da sombra.

 

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.

Por isso quando pareço não concordar comigo,

Reparem bem para mim:

Se estava virado para a direita,

Voltei-me agora para a esquerda,

Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —

O mesmo sempre, graças ao céu e à terra

E aos meus olhos e ouvidos atentos

E à minha clara simplicidade de alma...

 

 

 

 

 

TEXTOS EM ESPAÑOL

 

 

TABAQUERÍA

 

Tradução de Octavio Paz

 

Nunca seré nada.
No puedo querer ser nada.
Aparte de esto, tengo en mí todos los sueños del mundo.

Ventanas de mi cuarto,
Cuarto de uno de los millones en el mundo que nadie sabe quién son
(Y si lo supiesen, ¿qué sabrían?)
Ventanas que dan al misterio de una calle cruzada constantemente por la gente,
Calle inaccesible a todos los pensamientos,
Real, imposiblemente real, cierta, desconocidamente cierta,
Con el misterio de las cosas bajo las piedras y los seres,
Con el de la muerte que traza manchas húmedas en las paredes,
Con el del destino que conduce al carro de todo por la calle de nada.

Hoy estoy convencido como si supiese la verdad,
Lúcido como su estuviese por morir
Y no tuviese más hermandad con las cosas que la de una despedida,
Y la hilera de trenes de un convoy desfila frente a mí
Y hay un largo silbido
Dentro de mi cráneo
Y hay una sacudida en mis nervios y crujen mis huesos en la arrancada.

Hoy estoy perplejo, como quien pensó y encontró y olvidó,
Hoy estoy dividido entre la lealtad que debo
A la Tabaquería del otro lado de la calle, como cosa real por fuera,
Y la sensación de que todo es sueño, como cosa real por dentro.

 

Fallé en todo.
Como no tuve propósito alguno tal vez todo fue nada.
Lo que me enseñaron
Lo eché por la ventana del traspatio.
Ayer fui al campo con grandes propósitos.
Encontré sólo hierbas y árboles
Y la gente que había era igual a la otra.
Dejo la ventana y me siento en una silla. ¿En qué he de pensar?

¿Qué puedo saber de lo que seré, yo que no sé lo que soy?
¿Ser lo que pienso? ¡Pienso ser tantas cosas!
¡Y hay tantos que piensan ser esas mismas cosas que no podemos ser tantos!

¿Genio? En este momento
Cien mil cerebros se creen en sueños genios como yo
Y la historia no recordará, ¿quién sabe?, ni uno,
Y sólo habrá un muladar para tantas futuras conquistas.
No, no creo en mí.
¡En tantos manicomios hay tantos locos con tantas certezas!
Yo, que no tengo ninguna ¿puedo estar en lo cierto?
No, en mí no creo.
¿En cuántas buhardillas y no-buhardillas del mundo
Genios-para-sí-mismos a esta hora están soñando?
¿Cuántas aspiraciones altas y nobles y lúcidas
-Sí, de veras altas y nobles y lúcidas-
Quizá realizables,
No verán nunca la luz del sol real ni llegarán a oídos de la gente?

 

El mundo es para los que nacieron para conquistarlo
No para los que sueñan que pueden conquistarlo, aunque tengan razón.
He soñado más que todas las hazañas de Napoleón.
He abrazado en mi pecho hipotético más humanidades que Cristo,
He pensado en secreto más filosofías que las escritas por ningún Kant.
Soy y seré siempre el de la buhardilla,
Aunque no viva en ella.
Seré simpre el que no nació para eso.
Seré siempre sólo el que tenía algunas cualidades,
Seré siempre el que aguardó que le abrieran la puerta frente a un muro que no tenía puerta,
El que cantó el cántico del Infinito en un gallinero,
El que oyó la voz de Dios en un pozo cegado.
¿Creer en mí? Ni en mí ni en nada.
Derrame la naturaleza su sol y su lluvia
Sobre mi ardiente cabeza y que su viento me despeine
Y después que venga lo que viniere o tiene que venir o no ha de venir.
Esclavos cardíacos de las estrellas,
Conquistamos al mundo antes de levantarnos de la cama;
Nos despertamos y se vuelve opaco;
Salimos a la calle y se vuelve ajeno,
Es la tierra y el sistema solar y la Vía Láctea y lo Indefinido.

 

Come chocolates, muchacha,
¡Come chocolates!
Mira que no hay metafísica en el mundo como los chocolates,
Mira que todas las religiones enseñan menos que la confitería.
¡Come, sucia muchacha, come!
¡Si yo pudiese comer chocolates con la misma verdad con que tú los comes!
Pero yo pienso y al arrancar el papel de plata, que es de estaño,
Echo por tierra todo, mi vida misma.)

Queda al menos la amargura de lo que nunca seré,
La caligrafía rápida de estos versos,
Pórtico que mira hacia lo imposible.
Al menos me otorgo a mí mismo un desprecio sin lágrimas,
Noble al menos por el gesto amplio con que arrojo,
Sin prenda, la ropa sucia que soy al tumulto del mundo
Y me quedo en casa sin camisa.

 

(Tú que consuelas y no existes, y por eso consuelas,
Diosa griega, estatua engendrada viva,
Patricia romana, imposible y nefasta,
Princesa de los trovadores, escotada marquesa del dieciocho,
Cocotte célebre del tiempo de nuestros abuelos,
O no sé cual moderna -no acierto bien la cual-
Sea lo que seas y la que seas, ¡si puedes inspirar, inspírame!
Mi corazón es un balde vacío.
Como invocan espíritus los que invocan espíritus me invoco,
Me invoco a mí mismo y nada aparece.
Me acerco a la ventana y veo la calle con una nitidez absoluta.
Veo las tiendas, la acera, veo los coches que pasan,
Veo los entes vivos vestidos que pasan,
Veo los perros que también existen,
Y todo esto me parece una condena a la degradación
Y todo esto, como todo, me es ajeno.)

Viví, estudié, amé y hasta tuve fe.
Hoy no hay mendigo al que no envidie sólo por ser él y no yo.

 

 

En cada uno veo el andrajo, la llaga y la mentira.
Y pienso: tal vez nunca viviste, ni estudiaste, ni amaste, ni creíste
(Porque es posible dar realidad a todo esto sin hacer nada de todo esto.)
Tal vez has existido apenas como la lagartija a la que cortan el rabo
Y el rabo salta, separado del cuerpo.

Hice conmigo lo que no sabía hacer.
Y no hice lo que podía.
El disfraz que me puse no era el mío.
Creyeron que yo era el que no era, no los desmentí y me perdí.
Cuando quise arrancarme la máscara,
La tenía pegada a la cara.
Cuando la arranqué y me vi en el espejo,
Estaba desfigurado.
Estaba borracho, no podía entrar en mi disfraz.
Lo acosté y me quedé afuera,
Dormí en el guardarropa
Como un perro tolerado por la gerencia
Por ser inofensivo.
Voy a escribir este cuento para probar que soy sublime.

 

Esencia musical de mis versos inútiles,
Quién pudiera encontrarte como cosa que yo hice
Y no encontrarme siempre enfrente de la Tabaquería de enfrente:
Pisan los pies la conciencia de estar existiendo
Como un tapete en el que tropieza un borracho
O la esterilla que se roban los gitanos y que no vale nada.

El Dueño de la Tabaquería aparece en la puerta y se instala contra la puerta.
Con la incomodidad del que tiene el cuello torcido,
Con la incomodidad de un alma torcida, lo veo.
El morirá y yo moriré.

 

El dejará su rótulo y yo dejaré mis versos.
En un momento dado morirá el rótulo y morirán mis versos.
Después, en otro momento, morirán la calle donde estaba pintado el rótulo
Y el idioma en que fueron escritos los versos.
Después morirá el planeta gigante donde pasó todo esto.
En otros planetas de otros sistemas algo parecido a la gente
Continuará haciendo cosas parecidas a versos,
Parecidas a vivir bajo un rótulo de tienda,
Siempre una cosa frente a otra cosa,
Siempre una cosa tan inútil como la otra,
Siempre lo imposible tan estúpido como lo real,
Siempre el misterio del fondo tan cierto como el misterio de la superficie,
Siempre ésta o aquella cosa o ni una cosa ni la otra.

 

Un hombre entra a la Tabaquería (¿para comprar tabaco?),
Y la realidad plausible cae de repente sobre mí.
Me enderezo a medias, enérgico, convencido, humano,
Y se me ocurren estos versos en que diré lo contrario.

Enciendo un cigarro al pensar en escribirlos
Y saboreo en el cigarro la libertad de todos los pensamientos.
Fumo y sigo al humo con mi estela,
Y gozo, en un momento sensible y alerta,
La liberación de todas las especulaciones
Y la conciencia de que la metafísica es el resultado de una indisposición.
Y después de esto me reclino en mi silla
Y continúo fumando.
Seguiré fumando hasta que el destino lo quiera.

(Si me casase con la hija de la lavandera
Quizá sería feliz).
Visto esto, me levanto. Me acerco a la ventana.
El hombre sale de la Tabaquería (¿guarda el cambio el la bolsa del pantalón?),
Ah, lo conozco, es Estevez, que ignora la metafísica.
(El Dueño de la Tabaquería aparece en la puerta).
Movido por un instinto adivinatorio, Estevez se vuelve y me reconoce;
Me saluda con la mano y yo le grito ¡Adiós, Estevez! y el universo
Se reconstruye en mí sin ideal ni esperanza y el Dueño de la Tabaquería sonríe.

 

 

--------------------------------------------------------------------

 

Tradução de

Sebastián Santisi

 

 

Cuando la hierba crezca en cima de mi sepultura,
Sea esta la señal para que me olviden del todo.
La Naturaleza nunca se recuerda, y por eso es bella.
Y si tuvieran la necesidad doentia(*) de "interpretar" la hierba verde sobre mi sepultura,
Digan que yo continúo a enverdeciendo y siendo natural.

 

 

 

AUTOPSICOGRAFIA


Tradução de

Sebastián Santisi

 

 

El poeta es un fingidor.
Finge tan completamente
Que llega a fingir que es dolor
El dolor que de veras siente.

Y los que leen lo que escribe,
En el dolor leido sienten bien,
No las dudas que él tuvo,
Mas sólo la que ellos no tienen.

Y así en las canaletas de la rueda
Gira, entreteniendo la razón,
Ese comboy de cuerda
Que se llama corazón.

 

 

PESSOA, Fernando.  Antología poética. El poeta es um fingidor. Edición y traducción Ángel Crespo. Undécima edición.  Madrid: ESPASA, 2006.  393 p, 11X17,5 cm.  ISBN 84-239-1867-X   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

POEMA EN LÍNEA RECTA

 

Traducción de Ángel Crespo

 

Nunca he conocido a quien se haya llevado una soba.

Todos mis conocidos han sido campeones de todo.

 

Y yo, tantas veces despreciable, tantas veces puerco,

tantas veces vil,

yo, tantas veces indiscutiblemente parásito,

indisculpablemente sucio,

yo, que tantas veces no he tenido paciencia para bañarme,

yo, que tantas veces he sido ridículo, absurdo,

que he enrollado los pies públicamente en la alfombra

de las ceremonias,

que he sido grotesco, mezquino, sumiso y arrogante,

que he sufrido afrentas y me he callado,

que cuando no me he callado, he sido más ridículo todavía;

yo, que les he resultado cómico a las camareras del hotel,

yo, que he visto guiñar los ojos a los mozos de cuerda,

yo, que he hecho granujadas financieras, pedido
prestado sin pagar,

yo, que cuando llegó la hora de las bofetadas, me agaché

fuera del alcance de la bofetada;

yo, que he sufrido la angustia de las pequeñas cosas
ridiculas,

me doy cuenta de que no tengo par en esto en todo el

mundo.

Todo el mundo que ieon0zco y que habla conmigo

jamás hizo nada ridículo, nunca sufrió una afrenta,

nunca fue sino príncipe —todos ellos príncipes— en la

vida...

 

¡Ojalá oyese a alguien la voz humana

que confesase, no un pecado, sino una infamia;

que contase, no una violencia, sino una cobardía!

No, todos son el Ideal, si los escucho y me hablan.

¿Quién hay en este ancho mundo que me confiese que

ha sido vil una vez?

¡Oh príncipes, hermanos míos,

 

cono, estoy harto de semidioses!

¿Dónde hay gente en el mundo?

 

¿Entonces soy yo quien es vil y erróneo en esta tierra?

 

Las mujeres podrán no haberlos amado,

pueden haber sido traicionados, pero ¡ridículos, nunca!

Y yo, que he sido ridículo sin haber sido traicionado,

¿cómo puedo hablar yo con mis superiores sin titubear?

Yo, que he sido vil, literalmente vil, vil en el sentido mezquino e infame de la vileza.

 

Quiero terminar entre rosas, porque las amé en la infancia.

Los crisantemos de después, los deshojé en frío.

Hablad poco despacio.

Que yo no oiga, sobre todo con el pensamiento.

¿Qué quise? Tengo las manos vacías,

crispadas flébilmente sobre la colcha lejana.

¿Qué pensé? Tengo la boca seca, abstracta.

¿Qué viví? ¡Era tan bueno dormir!

 

 

 

Página publicada em janeiro de 2008; página ampliada e republicada em janeiro de 2015.

 



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