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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

AUTOBIOGRAFIA TARDIA

Poema de Antonio Miranda
(de Tu País está Feliz, 1971)

 

Quando me puseram no mundo
eu perguntei:
cacete, onde é que eu estou?

Afastei de mim a placenta
e me ungiram com óleos celestiais
e eu disse
uma merda este mundo
e saí correndo.

Me beliscaram na bunda
me meteram uma hóstia pela boca
uns livros na mão e me disseram

esta é a tua casa!

esta é a tua pátria!!

respeita teu pai e tua mãe!!!
Aqui tens o teu horóscopo
serás um militar como teu primo

me bateram e me perseguiram
e disseram
este garoto é um imbecil
um anormal

me vestiram com roupas padronizadas
fui matriculado num colégio público
mas eu fugia
e me submergia no rio
e me masturbava na sombra de um laranjal.

Peito aberto, pernas, braços, pernas
eu correndo e correndo
pernas, braços, pernas
e as vozes me dizendo
É INÚTIL!

Pernas, braços, pernas
E me cadastraram na polícia quando fugi de casa
e me perguntaram
Por que tu fugiste?!
(um longo silêncio)

Porque eu quis!!!

(Bofetada)

Papai, a bênção!

Deus te abençoe.

E me deram brinquedos
e me ofereceram bombons
e o guarda da Funabem
me deu um gole de pinga

me ofereceu maconha

quis me beijar na boca

e disse

já és um homem

vá pra puta que pariu!

 

Foi quando me inculcaram o hábito da leitura

li o tal de Shakespeare e o Walt Disney

devorei as páginas do Pequeno Príncipe

Tarzan, Superman, Mandrake!

O Príncipe Valente!

 

E me vi voando pelos espaços siderais

cosmonaves, rompendo grilhões

cuspindo fogo

e abraçando mulheres superdotas

Marylin Monroe, Brigitte Bardot, Rachel Welch

imensas tetas aerodinâmicas!

 

Qual é atua, cara?

 

Eu, todo um artista de cinema

meu nome nos jornais

um prodígio, uma medalha

e me sacanearam os professores lá na escola.

 

Porque teu país tem heróis, ordem e

progresso, presidentes.

 

Porque temos a Academia de Letras

temos o Pão de Açúcar

o Getúlio e o Lacerda

o esquadrão da morte e a TFP!

 

Temos o Padim Ciço

a Dercy

e até o Rui Barbosa!

 

Temos o Carlos Gomes

e o Roberto Carlos!

E povoei minha memória

com monumentos vazios.

 

Pelo mau gosto eu vou sem susto

vou rimando, versificando.

 

O Oscar Wilde bem que merecia um Oscar.

Era um asco, um fiasco.

Mas, e o Rembrandt, e o Chopin?!

 

          Só que o Picasso
          não tinha um braço e o Salvador Dali nem era daqui.

 

E para vingar-me de tanto convencionalismo

para burlar tanto maniqueísmo
decidi inverter, subverter todos os
valores assimilados:

Napoleão foi um covarde que se fodeu em Waterloo.

Cleópatra? Uma puta que vendeu a pátria.

Judas quis salvar o mundo do Cristianismo.

 

Decidi olhar tudo ao revés,

ver tudo de viés:

 

a estátua da Liberdade está na entrada do

Cemitério de Pistoia.

 

Os marines desembarcaram em Santo Domingo

para combater as tropas de Fidel Castro.

 

Wall Street é a capital da Arábia Saudita.

O que estava em cima eu pus embaixo,

o de um lado pró outro lado:

 

Moscou tem três distritos: Brooklin, Manhattan,

Queens.

Jorge Luís Borges foi um escritor inglês

nascido na Argentina.

Rio de Janeiro é a capital do samba

e o Brasil, um dos Estados Unidos.

 

E com tudo posto ao revés

colocar-me no meio

e resgatar a realidade.

 

Para que o riso seja um libelo.

Para que o aplauso seja um rechaço.

Para que o silêncio não seja indiferença.

 

E para o bom entendedor
uma só palavra basta!

 

 

» Vea el VIDEO digital con la escena correspondiente a esta canción de la obra TU PAÍS ESTÁ FELIZ, con los actores del grupo de teatro RAJATABLA, de Caracas, Venezuela.

 

Versión no YOUTUBE: http://www.youtube.com/watch?v=j-vK39hZcn0

 

 

 [ Escrevi este poema depois da estreia do espetáculo. Senti que faltava alguma coisa... Ainda vivíamos o período efervescente dos levantes estudantis de 1968. Em verdade, em vez de pretender fazer uma autobiografia, eu quis “retratar” o jovem daquela época, poema logo encenado genialmente por Carlos Giménez com um ator principal e textos compartilhados com outros atores. ANTONIO MIRANDA -  Ver: https://www.youtube.com/watch?v=j-vK39hZcn0 ]

         

“Este poema possui caráter autobiográfico e um tom de insatisfação. As características da antipoesia, no estilo de Nicanor Parra, sobressaem rapidamente: a irreverência, o prosaísmo, o deboche, forte recorrência ao cotidiano, o vocabulário próprio da oralidade, com expressões típicas da língua falada — coo início de orações com pronomes oblíquos átonos “me bateram e me perseguiram” ou o emprego de partículas denotativas de realce (lá) acompanhadas de locuções adverbiais como “os professores lá na escola”, ou até contrações preposicionadas muito coloquiais “pro”. Estruturas como essas admissíveis apenas pela oralidade e, na modernidade, pela licença poética. Ademais, o registro de expressões que fogem fortemente do decoro linguístico, ou seja, as tão conhecidas palavras de baixo calão, aparece nesse texto como uma marca da revolta da voz poética. Perpassa pelo texto toda uma isotopia de inquietação e de contradição entre o desejo de um eu jovem contra o de um mundo manipulador e agressivo. Devido a isso, o anseio de ruptura por parte do eu poético é grande.

  (...) “Esse efeito contraditório é compreensivo ao longo do texto e, em muitos momentos, externa-se o não suportar estar em um mundo tão árduo. Sobre as quinta e sexta estrofes, onde poeta declara, por metáfora, que o mundo é “uma merda”, Elga Pérez-Laborde afirma que “essa estrofe reflete um antipoeta ainda adolescente, um rebelde sem causa ou quem sabe, com causa. O rapaz carente, falando de si como se fosse outro” (2007ª, P. 5).  Entendemos que essa rebeldia é fase da Ditadura Militar. Há como suprimir as carências ante um período tão opressor? A poética mirandiana instiga-nos a essa reflexão e, num olhar semiótico, provoca-nos a abduções, induções e deduções próprias de uma veia poética assaz inquietante. Por isso, afirmamos que a interação autor/leitor atinge perfis significativos neste poema, nesta obra como um todo, porque dificilmente quem chegasse a lê-la não se identificaria com ela.

          O eu poético deseja fugir (e concretiza tal anseio) de todo esse sistema padronizado ao qual foi impelido. O despertar para a sexualidade, como a masturbação, posiciona-se, abdutivamente, isto é, por hipótese como sublimação * do ponto de vista concreto dessa fuga. O verso “peito aberto, pernas, braços, pernas”, que sugere a iconicidade metonímica, por ser constituído por partes de um indivíduo, designa os agentes físicos impulsionadores da corrida. Essa linha apresenta-nos uma forte característica mirandiana: seu veículo constante com o universo das palavras propõe uma descrição de momentos da vida humana.

          Antonio Miranda nos declarou que seu significativo liame com o universo vocabular visa assim à organicidade de uma linguagem fractal, caleidoscópica.** Elga Pérez-Laborde (2204b, p.10) chega a conclusões similares ao asseverar que este poeta é “prisioneiro das palavras, como Neruda, ele as coleciona,  joga com elas, as transpõe e recompõe num caleidoscópio onde se fundem realidade e ficção, realidade e poesia, corpos, sentimentos e ideias”, isto é, “desconstruindo Por um amor integral, encontramo-nos com fragmentos de um universo fascinante que nos permite despoetizar” (Idem, ibidem. Os grifos são do autor). Mesmo que surjam vozes que profiram em letras superdestacáveis que “é inútil”, as pernas e os braços do poeta, como se registra no poema, serão incansáveis para negar esse contexto, ou melhor, para erigir uma literatura que negue a ação do opressor. Esse emprego selecionado do léxico, o vínculo à simbolicidade, alicerça melhor a natureza fractal da poesia mirandiana.
         
          O eu poético não cessa de denunciar as mazelas da humanidade como a tentativa de contaminar um jovem que está em processo de descoberta do mundo: “e o guarda da Funabem”, “me deu um gole de pinga”, “me ofereceu maconha”, quis me beijar na boca”,  “e disse”, “já és um homem”, “vá pra puta que pariu!”. Tal contexto desenvolve um novo desejo de fuga, dessa vez a sublimação vem através de uma atitude intelectual — a leitura. A metonímia materializa-se significativamente com o verso “li o tal de Shakespeare e o Walt Disney”. O eu poético registra nitidamente seu afinco e sua necessidade para com o ato de ler, daí a presença da figura icônica da hipérbole iniciada pelos signos “devorei as páginas do Pequeno Príncipe”, “Tarzan, Superman, Mandrake!”, “O Príncipe Valente!”.  Estes nomes próprios designadores da indexicalidade pierceana afloram como um aspecto de salvação do estado de mal-estar do eu proporcionado pelo mundo. A leitura proporciona uma solução dinâmica, torna-se o meio para o alcance da liberdade.

          O conhecimento levou o eu poético a idealizar, ou melhor, a sonhar “voando pelos espaços siderais”, cosmonaves, rompendo grilhões”, “cuspindo fogo”,  “e abraçando mulheres superdotadas”. Percebamos que há uma presença grande e constante nestes versos de fonema oclusivos, com /K/, /G/, /P/, /D/, o que sugere através da iconicidade imagética destes sons uma sintonia com o forte ato de romer.  Qual seria o prêmio dessa ruptura? Abraçar Marylin Monroe, Brigitte Bardot, Rachel Welch, isto é, mais uma vez a natureza da indexicalidade incorporada nos nomes próprios proporciona uma aprazível evolução emocional do eu poético. Até que lhe é perguntado: “Qual é a tua, cara?”. Esse verso surge como se forçasse o eu a desligar-se do mundo pessoal para adentrar a realidade. E a resposta, típica de um sujeito envolvido com seu crescimento: “Eu, todo um artista de cinema”, “meu nome nos jornais”. Esses versos quebram um pouco a fala constante do eu, devido ao dialogismo materializado pelos pronomes “tua” e “eu”. Postura essa que se adapta bem às técnicas da contemporaneidade poética.

          O tom de crítica aprofunda-se pelo versos e poderíamos que este é intensificado pela ironia, própria a antipoesia. O eu poético afira que foi iludido: “me sacanearam os professores lá na escola” com o sfeitos de grandes personagens constitutivos da nação. Neste momento, o eu vai enumerando uma série de nomes, “heróis”, lugares que seriam, segundo os professores, apoteóticos, mas que só serviram para povoar a memória “com monumentos vazios”. Essas palavras são de uma argumentação bastante contundente, própria de uma consciência questionadora e em busca de mudanças que vão além dos nomes. A indexicalidade deste momento é alterada de nomes de pessoas para lugares a fim de refletirmos sobre a complexidade sociopolítica da nação. Essa crítica é intensificada porque o eu enunciador decidiu “inverter, subverter todos os valores assimilados”, isto é, ridiculizá-los através da antipoesia. Um exemplo disso: “O Oscar Wilde bem que merecia um Oscar”, “Era um asco, um fiasco”. O jogo com as paranomásias proporciona um efeito lúdico e ao mesmo tempo debochado. O poeta elenca nomes não brasileiros afim de questiona o motivo do valor dado aso de fora e não aos nativos, por isso são mencionados feitos, com agressivas adjetivações, de grandes personagens da história universal: Napoleão e Cleópatra.

          Em contrapartida, a referência a Judas posiciona-se como um elogio à ação de ele tentar livrar a humanidade, na concepção do eu poético, de um seus maiores opressores, o Cristianismo, por isso o emprego do signo “salvar”. A tentativa de ironizar, satirizar, ridiculizar estruturas consagradas porta-se como um não suportar mais de padrões que podam todo e qualquer tipo de expressão. A finalidade do texto, ou seja, seu interpretante maior é justamente debochar para conscientizar. Daí o eu poético afirmar: “decidi olhar tudo ao revés”. E bastante reflexiva a asserção de que “a estátua da Liberdade está na entrada do Cemitério de Pistoia”. Isso serve de censura à Ditadura Militar vigente na época da primeira edição de Tu país está feliz (1971). A CIDADE DE Pistoia, na Itália, possuía um cemitério que abrigou quatrocentos e sessenta e dois soldados mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Vejamos quão crítica é a ideia de a liberdade localizar-se na entra de um cemitério militar. Esse argumento para época era deveras agressivo para o regime vigorante e, de fato, a liberdade, neste período, havia sido severamente enterrada.

          O eu poético vai erigindo uma indexicalidade em confluência com proposições sígnicas de forte interpretação. E para que? A fim de apresentar o inverso que o mundo, especificamente o Brasil, havia se tornado: “E com tudo posto ao revés”, “colocar-me no meio”, “e resgatar a realidade”.  Tudo isso para que a alegria seja revigorada e “o silêncio não seja indiferença”. Criticar será o signo suficiente, constituído do forte e reflexão “para um bom entendedor” que registrará as mudanças como inevitáveis.

 

*Para a Psicologia,sublimar significa substituir um desejo por outro, no caso do eu poético acima, quando ele não concretiza a fuga real, ele exterioriza-se através do ato da masturbação.
**Entrevista concedida ao candidato, em 18 de dezembro de 2012, na Chácara Irecê, Goiás.

Extraído de:


DIAS JÚNIOR, Valter Gomes. A poesia de Antonio Miranda e suas intersemioses.  João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes; Departamento de Pós-graduação em Letras, 2014.  Tese de doutorado, orientação de Zelia Bora. (p. 173-179)

 

 


 

 

 
 
 
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