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   CARLOS  SOULIÉ DO AMARAL   (Marília, São  Paulo, 1944-  )     Tragédia da monja   Incendiou-se a virilha da monja  a santa monja piedosa e pura.  0 hábito que usava ela despiu  e do que era sem saber saiu  imaculada, ainda que em fervura.   Então, correndo pela capela barroca e bela,  a monja atônita esculpiu pavor na face de todos os santos  que não sentiam sua dor.   Em seu transe transbordado  ganhou o espaço do paço.  Nem mesmo invocou a Virgem,  nem mesmo invocou Jesus.   No ardente e pânico terror  das brasas que jamais imaginara,  a monja foi correndo, quase alada,  tombar, sem lérias e sem leros,  nos braços do poeta que sonhara  o pecado de tê-la como amada.   Deslumbrado, o poeta deslumbrou  a monja com os ímpetos mais feros,  cobrindo-a de calafrios  nas aras do altar de Eros.   Apagou-se então o incêndio  num susto de duplo mistério: santa e vate se perderam  num embate de virilhas  entre ardores e arrepios  no paço do monastério: santa e vate se encontraram na história de maravilhas de um conto que me contaram.                        Tributo poético, 1963     O livre na paisagem   Um gaturamo é mais nada  do que pássaro num ramo  de arbusto, de árvore, um  pássaro solto em plano  de ar, planando, voando  dono de si e suas asas.   Canta porque quer, pousa  onde quer e em sua pausa  toda liberdade é inverdade  porque ele a usa  sem sentido de ser  livre ou de querer.   Em verdade um gaturamo  só é pássaro num ramo  quando canta ou pia.  Então, mostra não ter amo  que não seja a alegria.  Tudo o mais nele é paisagem.  Folha ao ramo incorporada,  folha de árvore flanando,  folha no chão, semi-alada,  folha quieta entre folhagem,  no mais esta ave paisagem  é um gaturamo, mais nada.             Morte na rua simpatia, 1967      De  ANTOLOGIA  POÉTICA DA GERAÇÃO 60.  ÁLVARO ALVES  DE FARIA; CARLOS FELIPE MOISÉS, organizadores. São Paulo: Nankin Editorial/  Instituto Moreira Salles, 2000.    
 
 De VERBASão Paulo: Cultrix,  1999
     Verba   V   O poema surge, averba, grafa e segue            EM  TI, LEITOR,   a quem a chama foi entregue com suor e com amor.       Soneto  Vaivém
          Para  Fernão Lara Mesquita     Das cercas, das paredes, da porta, do teto e do chão frio, me desloco e desta hora igual e coletiva escapo e vou direto aonde a onda anda, pelo mar afora.   A conta, o livro, a regra, a rua, o lar, o  veto, o sim, o não, o cheque, o pão, o juro, a  mora, tudo é nada. Sem devoção e sem afeto, eu vou por onde a onda anda, mar afora.   Além do céu e além do mais, pelo mar bravo e alegre vou, colhendo estrelas com a mão, entre perfumes de pitanga e sons de cravo   até que o telefone toca e tudo então é novamente tudo e sou de novo escravo do chão, da regra, da universal servidão.     Espelho III   Enquanto nessa frente fria brilha o peso do passado, o contratempo do presente se torce numa trilha sem saída aparente. E sem retorno.   Então é que   se faz urgente ver de novo o que há de novo longe e fora da fira frente, e mergulhar no forno do dia, e incandescer todo o universo.   Se o que contempla não enxerga mais em si o portal da lendas e aventuras, há que entender o espelho de outro modo e ser, do que se vê, o contrário, o  inverso.        Página  publicada em setembro de 2009, ampliada em novembro de 2009.   
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