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RAIMUNDO  DE MORAES
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                Raimundo  de Moraes é jornalista e publicitário, e um dos editores do Portal Literário  Interpoética. Vem da eclética geração do Movimento de Escritores Independentes  de Pernambuco, que agitou as ruas do Recife na década de 1980. Tríade é o seu segundo livro solo, e  pela primeira vez na história da literatura pernambucana uma mesma obra reúne  três vozes distintas, unidas pelo processo da heteronímia. Em 2010 - na persona  de Aymmar Rodriguéz - publicou também Baba  de Moço, através da Livrinho de Papel Finíssimo. Publicações em coletâneas: Recife conta o São João (2008,  Fundação de Cultura Cidade do Recife); antologia  nacional Dedo de Moça (Ed. Terracota, 2009) e demais coletâneas dos  concursos literários nos quais foi premiado:
                                                                                 
                                                                                •        Coletânea  do Prémio TOC 140 Poesia no Twitter (Hiporto, 2010)
                                                                                •        Concurso  Nacional Carlos Drummond de Andrade (Sesc-DF, seleçáo 2008)
                                                                                •        Off-Flip  2008 (Paraty, RJ) Primeiro lugar categoria Poesia, nacional-exterior
                                                                                •        Concurso  Nacional de Literatura Fun¬dação Garibaldi Brasil, Rio Branco, Acre - categoria  Conto (seleção 2008)
                                                                                •        Menção  Honrosa em Poesia no Concurso Nacional Mendonça Filho (Alagoas, 2008)
                                                                                •        Menção  Honrosa no Concurso Nacional Helena Kolody (Secretaria de Cultura do Governo do  Paraná, 2007)
                                                                                •        Concurso  Nacional de Contos Macha¬do de Assis (Sesc-DF, seleção 2007)
                                                                                •        Nelson  Rodrigues e as Tragédias Cariocas Hoje (Editora Nova Fronteira / Autoria.com,  2007)
                                                                                •        Prémio  Mostre seu Talento - Poesia (Chesf / Sindicato dos Bancários de Pernambuco,  2006)
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                
                                                                                MORAES, Raimundo de.  Tríade / Aymmar Rodríguez – Raimundo  Moraes – Semíramis.  Recife, PE: FacForm, 2010.  104 p.   15x18 cm. Design: Andréa Aguiar        ISBN  978-85-98896-43-4   Ex. bibl. Antonio  Miranda
                                                                                 
                                                                                “Tríade em sua proposta não é uma obra comum  mas nem por isso busca intelectualismos. Seus heterônimos se entreolham e se  afastam, se repelem e se locupletam. Depois de mais de vinte anos em gavetas ou  sussurrados para bem poucos, os poemas se impuseram como voz altissonante: com  este livro acometeu-me, também — em nível pessoal — a lucidez advinda da  renúncia.” RAIMUNDO DE MORAES 
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                “Vale  a pena divulgar a boa deste poeta singular”!
                                                                                                                                                ANTONIO MIRANDA
                                                                                 
                                                                                Seleção de  poemas das três partes do livro, incluindo os heterônimos:
                                                                                 
                                                                                
                                                                                                                                                ATIREM A PEDRA – de AYMMAR  RODRÍGUEZ
                                                                                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                Corpos Nossos
                                                                                                                                                Corpos nossos 
                                                                                                                                                                                                                que estão arfantes
                                                                                                                                                                                                                sacrificados sejam os vossos gozos
                                                                                                                                                                                                                Venham a nós
                                                                                                                                                                                                                os vossos prazeres
                                                                                                                                                                                                                Sejam feitos
                                                                                                                                                                                                                os nossos desejos
                                                                                                                                                                                                                aqui no leito
                                                                                                                                                                                                                ou lá no chão
                                                                                                                                                                                                                O orgasmo nosso
                                                                                                                                                                                                                de cada dia
                                                                                                                                                                                                                nos deem hoje
                                                                                                                                                                                                                perdoem as nossas fraquezas
                                                                                                                                                                                                                como nós perdoamos
                                                                                                                                                                                                                a quem não tem fornicado
                                                                                                                                                                                                                e livrai-nos de todos os maus amantes
                                                                                                                                                                                                                Amém
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                Last summer 
                                                                                                                                                O que restou da paixão
                                                                                                                                                                                                                o verão sugou
                                                                                                                                                                                                                numa grande esponja amarela
                                                                                                                                                                                                                Meu pau e minha alma
                                                                                                                                                                                                                cheiram agora a patchouli
                                                                                                                                                                                                                Mas ver você incendeia os meus nãos
                                                                                                                                                                                                                Agora vamos correr em largas avenidas
                                                                                                                                                                                                                enlouquecer de CO2
                                                                                                                                                                                                                enrolar as l[ínguas
                                                                                                                                                                                                                em travos de cachaça e cinismo
                                                                                                                                                                                                                Para o seu tédio:
                                                                                                                                                                                                                explodir os semáforos
                                                                                                                                                                                                                e arrancar a casca
                                                                                                                                                                                                                da cidade ferida
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                Bife
                                                                                                                                                Tiro teus rótulos e preço
                                                                                                                                                                                                                E vou mordendo. Quero te amaciar
                                                                                                                                                                                                                no bate-rebate de carícias sacanas
                                                                                                                                                                                                                no vira-vira do quero mais
                                                                                                                                                                                                                Sacolejar as corcovas
                                                                                                                                                                                                                estirar as carnes para todos os lados
                                                                                                                                                                                                                o gosto salgando-se de suores e esperma
                                                                                                                                                                                                                A tarde revirando
                                                                                                                                                                                                                o caldeirão fervente dos trópicos
                                                                                                                                                                                                                — supremo caldo do prazer
                                                                                                                                                                                                                E o sol nos torrando,
                                                                                                                                                                                                                rosbifes sangrentos
                                                                                                                                                                                                                (meu espeto vermelho de dor)
                                                                                                                                                 
                                                                                
                                                                                Imagem
                                                                                fardo
                                                                                                                                                farto
                                                                                                                                                fato
                                                                                                                                                fâmula
                                                                                                                                                fiz
                                                                                                                                                em mim
                                                                                                                                                fato fardo
                                                                                                                                                fado faz
                                                                                                                                                foz
                                                                                                                                                farto falo
                                                                                                                                                pardo
                                                                                                                                                facho
                                                                                                                                                faz(-se)
                                                                                                                                                foz (em mim)
                                                                                                                                                parto
                                                                                                                                                fado farto
                                                                                                                                                pardo fardo
                                                                                                                                                — voz
                                                                                
                                                                                
                                                                                
                                                                                                                                                
                                                                                                                                                                                                                CICLO – RAIMUNDO DE MORAES
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                ciclo
                                                                                                                                                A cama   espinha teu corpo
                                                                                                                                                                                                                e na meia-noite insone
                                                                                                                                                                                                                teu desejo ofusca a pálida minguante.
                                                                                                                                                                                                                Sou eu que me vingo e surjo com as marés,
                                                                                                                                                                                                                semente no chão solta pela preamar.
                                                                                                                                                                                                                Sou eu, homem, que venho e broto
                                                                                                                                                                                                                os lenhos que crescem nos Ciclos, a seiva que corrói.
                                                                                                                                                                                                                Raiz que afunda a coifa no teu desespero
                                                                                                                                                                                                                sorvendo a inquietação em fome crescente.
                                                                                                                                                                                                                Ou o tronco largo,
                                                                                                                                                                                                                silhueta em poros na anatomia dos abraços.
                                                                                                                                                                                                                Não, não passarão as estações.
                                                                                                                                                                                                                Porque todos os homens me levarão a ti.
                                                                                                                                                                                                                No teu corpo continuo em verdes frutos
                                                                                                                                                                                                                que amadurecem em escândalo no verão.
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                mergulho
                                                                                                                                                folhas desenham imóveis
                                                                                                                                                                                                                a aridez de curvas
                                                                                                                                                                                                                Sinuosos canais mapeiam a cidade:
                                                                                                                                                                                                                sujeira   solidão  sífilis
                                                                                                                                                                                                                Entre esgotos centenários
                                                                                                                                                                                                                desafoga meu corpo
                                                                                                                                                                                                                junto aos esqueletos da metrópole
                                                                                                                                                                                                                Por entre liquidez
                                                                                                                                                                                                                invisível
                                                                                                                                                                                                                findam as veias. E fel
                                                                                                                                                                                                                E(n)fim
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                DELIVRÁRIO DE AMOR E MORTE
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                Instante
                                                                                                                                                Libei o vinho
                                                                                                                                                                                                                cortei o pão
                                                                                                                                                                                                                acendi a mirra
                                                                                                                                                                                                                As águias esbarram em minha janela
                                                                                                                                                                                                                e a aorta
                                                                                                                                                                                                                sufoca-me em sustos.
                                                                                                                                                                                                                (Tantos quadros nas paredes
                                                                                                                                                                                                                tantas sombras nas molduras
                                                                                                                                                                                                                e atrás dos meus olhos
                                                                                                                                                                                                                teu rosto de camafeu).
                                                                                                                                                 
                                                                                                                                                confissão
                                                                                                                                                Com paciência esperei sua chegada.
                                                                                                                                                                                                                Fiz-me santa, guardei meus anéis de prata.
                                                                                                                                                                                                                Cabelos escovados, olhos em soslaio
                                                                                                                                                                                                                medindo os centímetros da tarde de verão.
                                                                                                                                                                                                                Quando chegou, eu já estava pura.
                                                                                                                                                                                                                Tentei esconder essa embriaguez
                                                                                                                                                                                                                que seu cheiro me dá:
                                                                                                                                                                                                                a memória grita sonhando
                                                                                                                                                                                                                com amêndoas doces de Tiro e Sidon.
                                                                                                                                                                                                                Mas não.
                                                                                                                                                                                                                Quando senti seus músculos sobre mim
                                                                                                                                                                                                                desataram as máscaras.
                                                                                                                                                                                                                Seu silêncio, eu sei, é pudor.
                                                                                                                                                                                                                Ele de repente lembra de certas dançarinas do cais
                                                                                                                                                                                                                e vê em olhares
                                                                                                                                                                                                                éguas, cadelas, gatas.
                                                                                                                                                                                                                Nunca uma mulher apaixonada.
                                                                                
                                                                                 
                                                                                
                                                                                  
                                                                                      | 
                                                                                  
                                                                                
                                                                                MORAES, Raimundo.  Jesus  Cristo Mon Amour.  Recife, PE: Edição de autor, 2017.  72 p.   13x18 cm capa dura, sobrecapa. Posfácio de  Susana Guimarães.   Ex. bibl. Antonio Miranda
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                “Começo  a leitura desse longo poema de Raimundo de Moraes e me surpreendo tensa, entre  o espanto e o encantamento. Poesia boa é assim. Chega e vai pegando pela mão,  arrebatando, levando a alma da gente por um “caminho para um lugar aonde não se  pode ir.” / Decido que o peso desses versos me obriga ao enfrentamento com  outros mistérios que a mente humana ainda não foi capaz de decifrar “te amo  mais que uma mãe  pode amar um filho”.  Até onde se pode amar? De que modo impõe limites ao amor?”  SUSANA  GUIMARÃES
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                                   1: revelação
                                                                                 
                                                                                                    Tiro o véu
                    aspiro  a sarjeta mais imunda
                     —  a humanidade fede
                                                                                 
                                                                                                   2: invocação das musas prostituídas
                                                                                 
                                                                                                   Oh  venham as nove urdiduras de
                    ilusões
                     as  nove cafetinas
                    as  nove não_sei-o_quê
                    numa  nuvem fétida
                     surge  o fantasma de Catulo:
                     diz,  pitonisa
                    por  quê em vez de libertar-me
                     a  Poesia me escraviza?
                     Rasgo  a túnica, custo o chãos:
                     verdades  por fora
                     verdades  por dentro
                                                                                 
                                                                                                   3. no furacão da pólis 
                                                                                         
                     Estou cega
                     entre  carros que buzinam
                     Metrôs  correm
                     tropeço  em meios-fios preciosos
                     cravejados  pela urina
                     de  pequenos ladrões
                    e  assassinos
                    Abençoada  sou
                     pois  um dia
                     serei  estrume de rosa
                                                                                 
                                                                                                  4. transfiguração no  elevador espelhado
                                                                                 
                                                                                 
                                                                                                  Putinhas de Zeus
                     ajudai-me,  elevai-me
                     Agora cortarei bifes
                     e  espalharei batatas-palha
                     na  mesa do jantar
                     O  pai de meus filhos
                                                                                                   Fingirá  ser homem
                     e  eu fingirei ser sua
                     Já  fui vestal e Colombina
                    — oh Balmain, oh Dior
                     perdoai este avental azul
                     marcado  pelo sêmen
                    dos entregadores
                     de  água mineral 
                                                                                 
                                                                                                  5. mesa solene
                                                                                 
                                                                                                   Baco, o vinho rosé
                     também  o bebe Pomba Gira
                     Quero  uma próxima sarjeta
                     Estou  já a cair
                     úmida,  vaselinada de etiqueta social
                    Profetizo  aos convidados:
                     comei,  bebei, acreditai
                     (eu  também já fui crédula)
                     O  aspartame adoçará vossas vidas
                     e  a flatulência vos acompanhará na alcova
                                                                                 
                                                                                                  6. de pernas abertas  para Morfeu
                                                                                 
                                                                                                   Quantas luas eclipsam
                     o  futuro de uma mulher?
                     A  janela enquadra a minguante
                     escuto  marés dentro de mim
                                                                                                   Vou  cair?
                     Agarro-me  na cama box ortopédica
                     como  se ela uma nau fosse
                     E  há que não ser?
                     —  leva-me em sonhos para a Morte
                     Rompem  descargas
                     neste  vinte andares profanos
                     Cada  um é um templo a ruir
                     escoando,  afundando
                     em  coliformes, em medo
                     Num  imenso esgoto
                     (ratazanas) 
                     adomeço
                     
   
                                                                                                            
                                                                                         VERONIK
                                                                                 
                                                                                              Men should be what they seem.    
                                                                                                                       SHAKESPEARE
                                                                                 
                                                                                       Men  should be what they seem.          
                                                                                                                       SHAKESPEARE
                                                                                 
                                                                                         Os  homens que me procuram
           buscam  em mim suas mães decaídas
                                                                                         Crucificadas  em esmegma e rancor
           É  com a cara pintada de mulher
           e  os peitos falhos de Eva
           que  em vão peço uma resposta
           ao  filho de Deus
           Sou  a pedra de toque da miséria humana
           e  o que quando dorme, é a sereia que sonha
           com  a própria morte
           Para  os meus três sexos
           sacerdotes  sussurram lamentos
           (em  Corinto
            os efeminados já previam
            o nosso longo reinado!
            Serei eu o começo de tudo?
           O  Filho abre os braços para o mundo
           enquanto  sou aquela em que a salvação
           está  sempre mais perto sempre mais longe
           Sobrevivo  nas imagens das fêmeas
           que  refletem a minha própria imagem
           Sou  a Verônica da hipocrisia
           e  dos dízimos profanos
           —  sem vão peço uma resposta ao Filho de Deus
           Sou  morno quente frio
           Herdarei  o mundo destruído 
           vomitado  no momento derradeiro?
           Serão  andróginos
           aqueles  que abrirão os Sete Selos?
           Um  homem pintado de mulher
           meu  útero é a imaginação dos que me sorriem
           Eis  minha fala mansa
           meu  rosto imberbe
           meu  pênis intumescido de veias
           O  que sou? Carne que é ponte
           perfeição  e pecado. O Abismo
           O  mais profundo horror feito de espelhos
           Serei  o começo de tudo?
           Comigo  os homens exorcizam seu pus e sua glória
           E  o Filho de Deus pode agora confessar
           que  é no corpo que o inferno arde?
           Posso  perdoar Tua morte inútil?
           Contempla-me
           O  patético homem pintado de mulher
           Delirante  entre vitrines entre lençóis 
           Nunca  salvo nunca em perdição
           Ao  pé da cruz chorei por nós
           ao  longe fui uma outra sombra
           que  desceu do Gólgota
           —  Não fui eu a apedrejar-te, Senhor
           As  palavras se enviesam e se consomem
           Os  séculos passam, as perguntas permanecem
           Olha  para ti e comunga:
                             Mulheres  rezarão um mea culpa
           comerão  placentas como hóstias
           —  agora sei que somos o começo de tudo
   
           
                     
                                                                                Página publicada em dezembro de 2016. Ampliada em fevereiro de 2018