LENILDE FREITAS
De pais pernambucanos, a autora nasceu em Campina Grande, Paraíba.
Possui Mestrado em Teoria da Literatura pela ÜFPE e Pós-graduação
em Literatura Brasileira pela Faflrc. É poeta e tradutora. Fez traduções para
o jornal Folha de S.Paulo, revista Escrita, Calibán e outras.
Estreou na literatura, em livro, no ano de 1987. tendo publicado: Desvios
(1987); Esboço de Eva (1987); Cercanias (1989); Espaço neutro (1991); Tributos (1994); Grãos na eira (2001): A casa encantada (Infantil -2009).
Prémios recebidos :
"All Nation Poetry Contesf (USA); "Prémio Emilio Moura de' Poesia (MG),"Augusto dos Anjos" (PB), "Arriete Vilela" (AL), “Prêmio Pasárgada” (SP), “Nestlé de Poesis” (SP).
Lenilde Freitas
A corça do campo: coletânea poética
Recife: Ed. da autora, 2010.
184 p. ISBN 859105270-7
Momento íntimo
O cheiro de café
passa e para
junto à tosse metálica
que golpeia o meu nervo acordado.
O mar — espelho de Deus —
se contorce.
Aproximo-me da vida
e ilumino o abismo que me tira o fôlego.
Uma cigarra toca seu clarim
— acorda os que dormem dentro de mim.
Narciso*
A flor narciso
tem seu mistério.
Depois que brota no topo da haste,
vive alguns dias e fenece.
Suas folhas curvas em dor
morrem também.
Como o bulbo vivo permanece,
levá-la ao escuro é o que convém,
deixar que o tempo passe.
Ao voltar à luz a flor renasce.
* De uma conversa com Mary Lou Daniel.
FREITAS, Lenilde. Esboço de Eva. São Paulo: Roswitha Kempf / Editores, 1987. s.p. ilus. 14x21 cm. Ilustrações da capa e miolo: Ismael Nery. Apresentação: Adélia Bezerra de Menezes. Col. Bibl. Antonio Miranda
Esboço de Eva se constrói em referência ao poema Ébauche d'un Serpent de Valéry. No entanto, enquanto o poeta francês se dedica, como ele próprio escreve nos "Cahiers", a penser en serpent, aqui Lenilde parece propor-se a penser en Eve, a "sentir como Eva". Seu poema desdobra aos olhos do leitor a experiência aurorai da mulher como ser de Desejo.
Adélia Bezerra de Meneses
(fragmentos)
À semelhança fui feita
e, como as estrelas, na unidade
desfeita.
Herdei a fragilidade
daquele em quem sopraram vida
eu, parte dele dividida.
Feita de barro que sou,
habitam em mim seres famintos,
pronta prà queda estou:
Deslizo em seus labirintos.
(...)
Quem me vedou,
para além desta ribeira,
enquanto viva eu for,
a macieira?
— Não toque os frutos, não .toque a planta.
Como não sonhar ventura tanta?
Ó longa sede não saciada,
por que minha boca a esta fonte se adapta,
se à minha alma ela está interditada?
Alma também de argila, mas intacta.
FREITAS, Lenilde. Espaço neutro. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. 70 p. 21x14 cm “3ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira” Capa: Valdir de Oliveira e Ary de Almeida Normanha. Orelha do livro: texto de Marcus Accioly. Col. Bibl. Antonio Miranda
(fragmento)
O segredo
“
“
“
“
“
é desvendar o “ do indizível
enquanto é tempo
enquanto o pires do arcabouço nos sustenta
—meu senhor——
ou a rotina que mastiga nos engole
aqui
assim curvados como um arco-íris
mas sem cor
mas sem corpo
que vire e revire
na esteira
a sarna
a tosse
a sujeira
a asma
entre ossos e coração
a alma expirando pasma pasma
do sonho menor que um grão
menor qtie a voz do infinito
que entre uma nuvem e outra desafina
e nem chega à varanda
onde rosas — labirintos de insetos —
cochilam
e um gato
tange as moscas de seu sonho
interminável
para que no calor da hora
protegido pela sombra
outro figo
amadureça
de dentro para fora
ROTEIRO DA POESIA BRASILEIRA anos 80. / direção Edla van Steen; seleção e prefácio Ricardo Vieira Lima. São Paulo: Global, 2010. (Coleção Roteiro da Poesia
Brasileira) ISBN 978-85-260-1155-7 No. 10 317
Exemplar da biblioteca de Antonio Miranda
ESBOÇO DA EVA
(fragmentos)
Deito-me sob o azul desta tenda.
Luz sobre prata é sol — por entre a fenda —
bordando o chão
em ponto de cruz e fogo com as linhas de sua mão —
candeia ardente donde me inundo,
itinerário de espelhos sobre o mundo.
“Ó vaidade! Causa primeira!”
Quem pôs diante de mim
este fogo-espelho para que eu me arda inteira
e me faça bela assim?
(...)
Longe está o paraíso;
Sombra da sombra, os devaneios
Ah, gesto quase indeciso
de sugar os próprios seios!
Ser dona de seu destino
e cantar o próprio hino,
isto somente exijo
à mulher que ora dirijo.
Neste escolhido rumo,
o amor serve de prumo.
E assim vou: escrevendo-me nos dias que nascem,
descrevendo-me nas noites que morrem;
Sendo a mãe que os filhos vela
e sendo os filhos que dormem;
A semente que gera o início
e o fim que a semente gera,
sendo o útero quase-vício
e o embrião que espera.
Meu nome grito bem alto, para que eu mesma não o
negue:
Sou EVA. Seguindo a Eva que ainda me segue.
Esboço de Eva (1987)
CANÇÃO QUASE ELEGÍACA
Quando você foi embora
por becos de nuvem e vento,
os pés presos entre ramagens
à tona do anoitecer
por onde escoou o momento
de inanição dos seus passos;
errante de outras margens,
todo fechado em meu ser
o sol se pôs em pedaços.
Desvios (1987)
A DYLAN THOMAS
Eras feliz à beira-mar, somente.
Sonâmbulo na manhã salgada
quando o vento rodopiava ao sol
e à noite guiava a estrela cadente.
Eras feliz à beira-mar, mais nada.
Nas barbatanas do amor-espuma
que morde a areia sem que as presas foram
a pele fina da esperança dada.
Eras feliz à beira-mar, na bruma
verde-azul em que pousaste as asas.
Gaivota namorando a água,
eras feliz à beira-mar, em suma.
Tributos (1994)
*
Página publicada e republicada em abril de 2025.
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