1   Fazenda  Jabuty, Mozarlândia.
                                                                                    A caveira na cancela lembra o dono.
                                                                                    A saga deste campo é a água
                                                                                    caindo (cristalina) no monjolo.
                                                                                  Os dedos interrogam o cofre-forte
                                                                                    e mexem no baú do tetravô.
                                                                                    Os olhos gerenciam o  criatório.
                                                                                    (A ganância aumenta e a terra chora).
                                                                                  2   A  montanha é escura: traz em si
                                                                                    os mistérios da terra indecifrada.
                                                                                  Um berro de bezerro é chamado
                                                                                    do mundo que perdeu meu avozin´
                                                                                    (Deus me livre se os comunas entram nisso,
                                                                                    major Afonso pensa, se entedia-se).
                                                                                  Caviloso,
                                                                                    o tempo entra e agoniza a tarde.
                                                                                  A peroba (de pé) assiste tudo.
                                                                                  3     "Ih, seu moço, dá tanta puta em Rialma"
                                                                                                                                        (anônima)
                                                                                  Aqui sé Ceres.
                                                                                    Do  outro lado do rio é Rialma.
                                                                                    A  canoa atravessa, o senhor cai
                                                                                    do  outro lado barranco, sem problema.
                                                                                  No  rio sem alma
                                                                                    corre  o desgosto dos que estão sem encosto.
                                                                                    No  rio das almas
                                                                                    burlesqueiam  em sonhos as mocinhas:
                                                                                    (Há  padres pregando e meninas indo).
                                                                                   Pela  cheia das águas,
                                                                                    a  colheita vem e esverdeja a gente.
                                                                                    Arroz  é frio antes de ser quente.
                                                                                    Arroz  é brejo antes da brancura
                                                                                    e  do prato de sopa que comemos.
                                                                                  Foi  em Rialma quer acordei pro mundo:
                                                                                    quando,
                                                                                    entre estrôncio e estrondo,
                                                                                    o  homem pisa a lua,
                                                                                    aqui  na terra a miséria erra
                                                                                    ruas  sem nome nos mocambos,
                                                                                    campos  de fome nas cidades:
                                                                                                     — aguentar, quem há-de?
                                                                                   
                                                                                                     ("Porta  sem chave", 1970)
                                                                                
                                                                                
                                                                                  CANTO-CHÃO  DO HOMEM PRÁTICO OU MANIFESTO DO
                                                                                    QUE  NÃO ENCONTROU MULHER NA NOITE DE SÁBADO      
                                                                                  
                                                                                    "É livre a manifestação do pensamento"
                                                                                      (Parágrafo  Quinto do Art. 141 da 
                                                                                      Constituição  Federal)                                                                                                                          
                                                                                  
                                                                                  Vontade  de amar uma mulher
                                                                                    de  maneira violenta e total.
                                                                                    Eu  — terrenamente anti-Gagárin,
                                                                                    anti-Sheppar,  anti-Cosmos, anti-incenso.
                                                                                    Ela:  feminina, Eva, nua,
                                                                                    sem  brincos, sem colares, sem essências,
                                                                                    absolutamente  fêmea e animal.
                                                                                  Vontade  de amar uma mulher
                                                                                    de  amor-nu, de amor-cama, genital, 
                                                                                    sem  limitações-objeto, sem pensamentos
                                                                                    pousados  em apólices, em política.
                                                                                    Maldosamente  nu. Terrenamente fiel,
                                                                                    e  fanático, e guerreiro, e mordedor.
                                                                                    Ela  nua, fanática, mordedora;
                                                                                    ela  — laranja que se chupa, fruta que se come,
                                                                                    que  se come por homem terrenal.
                                                                                   Vontade  de amar uma mulher cuja quentura
                                                                                    transborde  fogo das entranhas, suor, sal,
                                                                                    mar,  carne sugada, suco de lábios
                                                                                    e  de seios de ventre.
                                                                                  Após,  dormir o sono-cansaço imensamente,
                                                                                    profundamente  pedra e vegetal.
                                                                                  Acordar  com a manhã despertando vidraça
                                                                                    e  amar novamente o amor-cama, o amor-laranja,
                                                                                    o  amar-fruta, o amor-carne, animal,
                                                                                    animalescamente  nus, terrenamente dois.
                                                                                    Depois,  tomar banho, beijar face, vestir terno,
                                                                                    ficar  terno, metafísico ante a mesa.
                                                                                    Ler  jornal, Vietnã, guerra, Cosmos,
                                                                                    beijar  lábios, ficar prático e resoluto.
                                                                                    Cotidianamente  resoluto.
                                                                                                              ("Quilômetro  um", 1965)
                                                                                   
                                                                                  
                                                                                  A POESIA GOIANA NO SÉCULO XX  (Antologia) – Organização, introdução e notas   de Assis Brasil.  Rio de Janeiro: FBN / Imago  / IMC, Fundação Biblioteca Nacional, 1998.    324 p. (Coleção Poesia brasileira) ISBN 85-312-0627- 3                  Ex. bibl. Antonio Miranda
                                                                                   
                                                                                  Minha admiração pela obra crítica da  literatura brasileira  de ASSIS BRASIL vem de muito tempo, desde a época em  que ele atuava como jornalista literário no JORNAL DO BRASIL, onde eu publicava  alguns textos desde a época do Suplemento Dominical, com Reynaldo Jardim e  Ferreira Gullar. Comecei a adquirir livros dele — muitos — e o informava que o  acompanhava e, tempos depois, comecei a divulgar o que ele compilava nas  antologias de poesia brasileira, e os textos que escrevia, com muita  competência, sobre os autores. 
                                                                                    Comecei com Salomão Sousa, responsável pela seção de poesia goiana em  nosso Portal de Poesia – www.antoniomiranda.com.br, e com a notícia da morte do  grande piauiense, aos 92 anos, em 28 de novembro de 2021 – e também  "carioca" como eu, que vivi no Rio de Janeiro, boa parte de minha vida ou por  lá andava desde sempre... decidimos ampliar a divulgação dos textos, não  só dos poetas e, mais recentemente, sobre o que ele escreveu sobre os autores  que divulgava, na certeza de que ele sempre viu com simpatia o nosso trabalho.
                                                                                  
                                                                                    ANTONIO JOSÉ DE MOURA
                                                                                      por  ASSIS BRASIL 
                                                                                   
                                                                                  Conflito 
                                                                                    
                                                                                    O  INSTINTO MAU:
  "Vamos beber esta noite
                                                                                      conhaque e Brahma gelada,
                                                                                      para andarmos solenemente
                                                                                      pisando em nuvens,
                                                                                      piscando estrelas
                                                                                      e procurando a poesia que se escondeu no lixo.
  
                                                                                      Vamos voar extáticos
                                                                                      como passarinhos embalsamados
                                                                                      à espera do milagre impossível
                                                                                      da ressurreição.
                                                                                      Vamos compor versos estrábicos
                                                                                      sobre tiranos e tiranias
                                                                                      e versejar automaticamente
                                                                                      em arábicos e romanos
                                                                                      a infinidade numérica das Marias.
  
                                                                                      Vamos mentir descaradamente:
                                                                                      — Dormi na Europa
                                                                                      um sono francês
                                                                                      com uma francesa;
                                                                                      — hoje cheguei de Paris
                                                                                      pliglotamente viajando;
                                                                                      — ajudei meu pai comprar um transatlântico
                                                                                      carregadinho de poesia e outras drogas
                                                                                      para ofertar à Rainha da Inglaterra;
  
                                                                                      — sabe, eu fiquei noivo de Janes Masfield
                                                                                      e como é boa
                                                                                      e como é quente
                                                                                      e depravada
                                                                                      a Jane Mansfield!
  
                                                                                      Vamos ser ébrios apocalípticos,
                                                                                      frequentadores de café-society;
                                                                                      sobretudo, vamos discutir abertamente
                                                                                      pra todo mundo saber que entendemos de artes plásticas
                                                                                      e ficção:
                                                                                      vamos colocar diademas
                                                                                      na cabeça loura dos poemas;
                                                                                      vamos vestir um biquini
                                                                                      (O monoquíni está dando o que falar)
                                                                                      no corpo fluído da poesia
                                                                                      para que o nosso nome em letras garrafais
                                                                                      saia no suplemento literário dos jornais. 
  
                                                                                      Vamos rir dois quilômetros de riso
                                                                                      colgatemente perfumado,
                                                                                      ignorando se pagamos royalties
                                                                                      ao capital estrangeiro
                                                                                      para mostrar nossos dentes mordedores
                                                                                      brancos, broncos, brancos.
                                                                                      Vamos beber esta noite
                                                                                      conhaque e Brahma gelada,
                                                                                      vamos?"
  
                                                                                      E A CONSCIÊNCIA,
                                                                                      absoluta, responde,
                                                                                      tomando em suas mãos
                                                                                      a minha mão posta nela:
  "Deixa disso, é impossível!"
                                                                                             (Quilômetro um/ 1965)
                                                                                   
                                                                                   Itinerário de luz  e espanto     
                                                                                    
                                                                                    a)  Noite escura aquela noite.
                                                                                      Bairro escuro aquele bairro.
                                                                                      Lá vem o cego pra casa
                                                                                      com um par de olhos nos dedos.
                                                                                      Nasce com o sol todo dia
                                                                                      (pra ele cego também),
                                                                                      atravessa a rua 4
                                                                                      com um grito gaguejado:
                                                                                      a mão batendo na porta
                                                                                      busca a vida pendurada
                                                                                      num poste de 80 metros.
                                                                                      A cidade no seu rosto
                                                                                      é inferno de vertigem
                                                                                      dum Gauguin inicial.
                                                                                      Guia sem guia, o menino
                                                                                      conduz os passos do velho.
                                                                                      — Rafael, onde o mercado,
                                                                                      cheirando a polpa de fruto?
                                                                                      — Meu pai, aqui está ele
                                                                                      com mistérios verderubros.
                                                                                      — Rafael, te digo: o homem
                                                                                      cresce espessocrespo, anda
                                                                                      com seus archotes no mundo.
                                                                                      — Meu pai, o homem veste
                                                                                      o sol, exata camisa:
                                                                                      há dias em que o homem calça
                                                                                      a terra com pé exato;
                                                                                      há dias em que a tua palavra
                                                                                      é vida:
  
                                                                                      explosão de alegria.
  
                                                                                      Meu pai, aprendi que a vida
                                                                                      morrenasce a toda hora,
                                                                                      posto que do lago-noite
                                                                                      nasce sempre o rio-aurora —
                                                                                      — Rafael, o tempo conta
                                                                                      minuto dentro da hora.
                                                                                      hora mais hora tecendo
                                                                                      a carnadura da vida.
                                                                                      — Meu pai, a morte é quando
                                                                                      pára o relógio de Deus dorme?
                                                                                      — Rafael, não há silêncio
                                                                                      quando o negro é paisagem
                                                                                      de abrenúncios, maus augúrios.
                                                                                      (Mas o milagre vem vindo).
  
                                                                                      b)   Um dia, a luz invadiu
                                                                                      a Vila e os olhos do pai.
                                                                                      Hoje, o bairro e a vida
                                                                                      resplandecem a mercúrio.
  
                                                                                    (Porta sem chave/ 1970)
                                                                                    *
                                                                                   
                                                                                  VEJA e LEIA outros poetas de GOIÁS em nosso Portal: 
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