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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 





JOSÉ GERALDO


José Geraldo Pires de Mello nasceu em 1924. Estreou em livro com seu De Braços Dados (coroa de sonetos), em 1975, seguindo-se outro livro de sonetos: Chama de Amor (1978), O Catavento Amarelo (1978) e A Mensagem do Arco-íris (1981), todos eles publicados em Brasília, onde reside. Os poemas a seguir foram extraídos da obra O biquíni de filó (1972-1974), publicada pelo Senado Federal em 1981, selecionados por Fernando Mendes Vianna.

 

TANAJURA

 

Por conta de um bom descanso

A que o meu gosto se inclina,

Para o banho de água quente,

Fui procurar a piscina.

Dentro d´água estava bom

Mas vi, na manhã tão linda,

Que a coisa na passarela

Bem melhor estava ainda.

 

Uma garota maciça

Entre as demais encontrei,

Com trajes tão reduzidos

Que juro que me espantei.

Usava um biquíni escasso,

Do qual, num critério justo,

Uma gravata far-se-ia,

Ligando as peças, a custo...

 

O sutiã não cumpria

Sua missão, que é de escora:

Escorava o que podia,

Deixando o resto de fora...

E a tanga-miniatura,

Numa dona tão rotunda,

Era assaz incompetente

Para conter tanta bunda...

 

Melhor de frente ou de costas?

Francamente, eu não sabia,

Porém, na terceira volta,

Jurei que a frente perdia,

Que a dona, pelo argumento

Das ancas fartas e duras,

Devia ser diplomada

- Rainha das Tanajuras!

 

Deixo o registro fiel,

De todo isento de enganos,

Que a pequena rebolava

Mas não cabia nos panos.

E vendo-a por trás, de novo,

No molejo em que ela ia,

Eu lhe dei, sem duvidar,

O grau dez que merecia!...

 

 

MOTE*

 

Não sou de quem Você gosta

Mas tenho o que Você quer.



GLOSA

 

Essa coisa de gostar

Envolve uma trama densa,

Com fatores conhecidos

E outros nos quais nem se pensa.

Simpatia e bem querer

Tem aí o seu lugar,

Ao lado de outros arranjos

Ligados ao verbo amar.

 

Com Você o que se passa?

E pensando cá comigo

Eu procuro a solução

Mas achá-la não consigo.

De algo, porém, estou certo

E me emprenho numa aposta:

Se Você gosta de alguém,

NÃO DE QUEM VOCÊ GOSTA.

 

Vem daí o meu lamento

E também meu desencanto;

E será que com Você

Não ocorre um outro tanto?

Ou seja, que Você passe

Pelo grande dissabor

De amar alguém que não preze,

Que não queira o seu amor?

 

E se a coisa for assim,

Eu me arrisco a perguntar:

E a chama do seu desejo

Quem é que vai aplacar?

Lembre, pois, quando ferverem

Seus ímpetos de mulher

Que eu posso não ser seu bem

MAS TENHO O QUE VOCÊ QUER.*

 

*Mote colhido no pára-choque de um caminhão.

 

De
José Geraldo Pires-de-Mello
OFICINA DO SONETO
Brasília: Thesaurus/FAC , 2009.
294 p.ISBN978-85-7062-723-7

 

NOITES SEM TI

Cada noite é mais longa, e mais rude, e mais fria,
Se os braços não encontro em que tu me acalentas,
E suponho sem fim as minhas horas lentas,
Abismo em que se oculta a alvorada tardia...

Essas noites sem ti, cada qual mais vazia,
Cada qual mais envolta em sombras e tormentas...
Comigo, na vigília, essa estranha agonia
Que fica em teu lugar sempre que tu te ausentas...

Tu voltarás, eu sei... Não tardarás, tu dizes...
Mas nem tua promessa atenua os matizes
Do severo pesar que sinto em tua falta...

E nas noites sem ti, minha desdita eu vejo,
Vejo o sono tardar, e chego à noite alta,
Na amarga frustração da espera de teu beijo...

 


Contado, Pesado e Medido

 

Por que afirmas que tudo, nesta vida,

Tem de estar, de uma forma ou de outra forma,

 

Sujeito à condição, sujeito à norma

Da contagem, do peso e da medida?

 

Eu não creio na dor funda e sentida

Que em triplo de si mesma se transforma,

Nem creio num amor que se conforma

Com sete oitavos de uma despedida.

 

A décima potência do desejo,

Que pode interessar? Que vale o beijo,

Se na raiz quadrada se apresenta?

 

A mim, que as certas contas ando alheio,

Mais me importa a ternura do teu seio

Que o cosseno dos arcos que ele ostenta...

 

                                      Niterói, 10,06.75

 

Pescadora

  

                            A Ydê Afonso

 

 

Que bela pescadora! Quem diria!

Entretanto, asseguro, não é trote,

Pois bem sei que sem remos e sem bote,

Podes fazer segura pescaria...

 

É que aos dotes da tua simpatia

Tu agora acrescentas mais um dote,

Na cruel atração que se irradia

Desse anzol pendurado em teu decote...

 

Posto dos atrativos bem no meio,

Por um cordão suspenso no teu seio,

É o instrumento calculado e certo.

 

E há de haver quem trocando fá por sol

- Sob o fascínio do que está por perto -

Acabe preso nesse teu anzol...

 

                            Brasília, 03.07.75

 

 

JOSÉ GERALDO: PROSADOR

 

CIRCUNSPECTO

 

 E POETA LÍRICO-BURLESCO

 

Instituto Histórico e Geográfico

do Distrito Federal, em 25 de junho de 2003.

 

 

Texto extraído de:

 

HORTA, Anderson BragaDo que é feito o poeta.  Brasília, DF: Thesaurus Editora, 2016.  412 p.  14x21 cm. Arte da capa: Tagore Alegria.  ISBN 978-85-409-0287-9  

           

            José Geraldo Pires de Mello (ou Pires-de-Mello, com hifens), Jotagê, tout court ou acrescido do sobrenome, José Geraldo só, por extenso ou limitado às iniciais, ou Jota, ou somente J. — de várias maneiras costuma assinar-se o homem que passa a ocupar, nesta Casa, a cadeira que reverencia o grande poeta Manuel Bandeira. Variedade que bem se ajusta ao intelectual de diversas facetas — poeta, ensaísta, crítico e historiador literário, narrador, professor de língua e literatura; mas que, por outro lado, não reflete o invariavelmente bom, simpático e simples do ser humano que ele é, de pacatos hábitos familiares, calmo e ponderado, amante dos pássaros cantores e de um bom papo entre amigos.

            Terceiro dos quatro filhos do médico Hernani Pires de Mello e de Odette Porto Pires de Mello, José Geraldo é papa-goiaba de Niterói, onde nasceu em 18 de maio de 1924. (O gentílico popular e afetivo deriva da quantidade —e, certamente, do valor econômico— dos goiabais da região de Campos, tendo-se estendido a todos os nativos da gloriosa província fluminense, excetuados os da cidade do Rio de Janeiro, para os quais prosperou e fixou-se designação própria — são os cariocas.) Hoje, em verdade, pode, como nós, considerar-se candango, pois reside em Brasília desde 1961, e a esta cidade tem dado o melhor de sua madureza, seja no plano profissional, seja no das atividades eletivas.

            Mas deixemos que de si mesmo diga algo o poeta, neste auto-retrato que extraímos de No Rumo das Nebulosas:

 

       AUTO-RETRATO 

Nasci em Niterói, em maio. O dia
Era dezoito. Vinte e quatro o ano.
Não me queixo da vida e não me engano,
Dizendo não ser isso uma utopia. 

Afirmo até que a cada desengano
— E é certo que um ou outro me aparece —
Opõe-se de venturas farta messe
E vou assim vivendo em alto plano.

A incerteza, na vida, me parece
Uma constante e, em meus anseios planos,
Busco o rumo que eleva e que enobrece. 

Cultivo a madrugada e a Poesia.
Eu sou taurino — adorador de Vênus —
E Aldebarã é minha Estrela-guia.

 

            Sua vida escolar ostenta enriquecedora multiplicidade. Cursou o primário no Externato Halfeld, na cidade natal. Em 1935, matriculou-se no Colégio Militar do Rio de Janeiro. Daí voltou a Niterói, para estudar no Liceu Municipal Nilo Peçanha e, em seguida, no Colégio Brasil, onde, em 1941, concluiu o ginásio. Em 43 e 44, foi Cadete na Escola de Aeronáutica. Quatro anos depois, tornou ao Liceu, onde, em 1949, terminou o científico. Já em Brasília, fez Letras (Português / Latim e Português / Espanhol) no CEUB – Centro de Ensino Unificado de Brasília, atual UniCEUB – Centro Universitário de Brasília, entre 1972 e 1975, ano em que obteve licenciatura plena.  Em 1976 foi selecionado pela Universidade de Brasília para o Mestrado em Teoria da Literatura, que não chegou a concluir. Em 1982/83, no CEUB, integrou a primeira turma de pós-graduação lato sensu em Moderna Literatura Brasileira.

            Menos variada tem sido sua vida profissional. Entrou para o quadro do Banco do Brasil, por concurso, em 1946. Trabalhou em Campos, Niterói, Rio de Janeiro e Brasília, onde se aposentou, por tempo de serviço, em 1975. Parece-nos, porém, tanto por sua formação quanto pelas qualidades pessoais, que sua natural inclinação é para o magistério, em que se iniciou já na época em que concluía o científico. Em 1978 estaria de novo no CEUB, já então como professor de Literatura Brasileira, função que exerce até hoje. É presidente do Conselho Editorial do UniCEUB.

            Com mais de vinte livros publicados, participação em diversos outros, alguns opúsculos e copiosa colaboração em jornais e revistas, é notável e notória sua vocação de escritor, a que daremos ênfase especial. Sua atividade cultural amplia-se com o conferencista e membro efetivo de prestigiosas entidades como a Academia Fluminense de Letras, em Niterói, a Academia de Letras dos Funcionários do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, e, em Brasília, a Associação Nacional de Escritores – ANE, a Academia Brasiliense de Letras e a Academia de Letras do Brasil, de que é membro fundador e que tem presidido, desde a morte de Almeida Fischer. Além disso, é correspondente da Academia Brasileira de Literatura (Rio), da Academia Niteroiense de Letras, da Academia Petropolitana de Letras Raul de Leoni e da Academia de Letras da Região das Sete Cidades.

            Jota é casado em segundas núpcias com Yeda Nícia Machado Pereira. Tem quatro filhos, sendo dois do primeiro matrimônio. São eles: Maria Catharina Pires de Mello, Elysio Geraldo Pires de Mello, Anna Cristina Pires de Mello Ribeiro e Chaní Pires de Mello.

            Traçado esse rápido bosquejo biográfico, fixemos o foco no escritor, de cuja poesia e de cuja prosa se têm ocupado algumas das melhores penas daqui e dalhures, a exemplo de Almeida Fischer, João Ferreira, Alan Viggiano, Antônio Roberval Miketen, Joanyr de Oliveira, Branca Bakaj, Manoel Hygino dos Santos, Joaquim Branco. Comecemos pelo ensaísta, historiador e crítico literário, aspecto que mais de perto diz com a vocação nominal desta Casa.

            Cem Anos com Cruz e Sousa (ASEFE – Associação dos Servidores da Fundação Educacional do Distrito Federal / Thesaurus, Brasília, 1994) é livro originário de conferência comemorativa do centenário de publicação de Missal e Broquéis, pronunciada no Instituto de Cultura Hispânica, em 14 de outubro de 1993, sob os auspícios da Associação Nacional de Escritores e da Academia de Letras do Brasil. Foi reeditado em 1998, ano do centenário de morte do grande poeta, pela L.G.E., em convênio com o CEUB. Nesse livro, composto de estudo crítico-biográfico e de antologia dos sonetos, traça José Geraldo com justeza e elegância o glorioso perfil desse que é uma de suas mais altas admirações, e confirma-se, ele que de muito era reconhecido poeta, como correto e límpido prosador.

            Merecedor dos mesmos encômios é o livro dedicado à obra-prima de outra de suas maiores afeições literárias, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nosso autor, neste Redenção de Capitu (UniCEUB, 1999), faz minuciosa análise da personalidade de Bentinho, o personagem-narrador, com base em seu próprio relato, para concluir, clara e convincentemente, pela inocência daquela que é uma das mais legitimamente célebres e mais intensamente estudadas figuras femininas de nossa literatura.

            Entre essas duas obras, em 1995, saiu, pela Thesaurus, um opúsculo focalizando três luminares das letras latino-americanas: Martí, Darío e Lugones. Esse estudo, juntamente com outros que publicou em jornais e revistas acadêmicas, integra o volume Doze Ensaios Literários, no prelo. Por sinal, um desses ensaios é sobre o patrono da cadeira ora ocupada por Jota, intitulando-se “O Crepuscular Manuel Bandeira”. Tem inédito Influências do Negro e do Índio na Cultura Brasileira. E haveria que falar, ainda, de estudos outros, como Acentuação Gráfica: Revisão que se Impõe (saído no n.° X da Revista da Academia Brasiliense de Letras, em 1990, e como folheto em 2003), e discursos acadêmicos, e saudações de paraninfo —plaquetes de 1996 (duas), 1997 e 2000—, se tivéssemos condições de ser exaustivos.

            Dignos de menção especial são os didáticos Figuras de Estilo e Teoria do Ritmo Poético, lançados pelo CEUB (atual UniCEUB), em 1997, em convênio com a Royal Court Editora e, em 2001, com a Editora Rideel. São preciosas fontes de consulta para quem se interesse por esses assuntos. Coube-me a honra de redigir-lhes as orelhas. Com toda a convicção o repito, o conhecimento que os infunde e deles irradia, lastreado no magistério de Literatura Brasileira, Pesquisa Literária, Literatura Portuguesa e Teoria Literária, é útil a todo aquele que pretenda escrever literariamente, e não apenas ao aluno e ao professor, numa relação circular e viciosa que decretaria a sua inutilidade. Pensamento claro, rigor de pesquisa, estilo direto e simples, canalizando um saber de leitura e de experiências feito, dão plena valia ao que nos ministra nesses dois volumes.

            A prosa de José Geraldo não se limita ao ensaístico, mas aprofunda-se nos territórios da imaginação. Contista e cronista, não reuniu ainda em produção própria seus trabalhos no gênero (há tempos anuncia umas Histórias que a Vida Inventa), mas tem-nos publicado em periódicos e antologias. São estas as organizadas por Salomão Sousa (Conto Candango, Coordenada, Brasília, 1980), pelo SINPRO (Contos e Poesias de Professores, 1983, Contos e Poemas, 1984 e 1985), por Napoleão Valadares (Contos Correntes, 1988) e por Aglaia Souza (Cronistas de Brasília, 1994), editadas pela Thesaurus.

            Já que falamos de antologias, algumas delas com mistura de gêneros, mencionemos as demais em que figura: Planalto em Poesia, de Napoleão Valadares (Thesaurus, 1987), Alma Gentil: Novos Sonetos de Amor, de Nilto Maciel (Códice, Brasília, 1994), Água Escondida, de Neide Barros Rego (Cia. Brasileira de Artes Gráficas, Rio, 1994), Caliandra: Poesia em Brasília (André Quicé, 1995), Poesia de Brasília, de Joanyr de Oliveira (Sette Letras, Rio, 1998), Antologia do Adeus, de Alice de Oliveira (2000); e esta curiosidade: Brasil: Receitas de Criar e Cozinhar, de Patricia Bins e Dileta Silveira Martins (v. I pela Bertrand Brasil, Rio, 1997, e II pela AGE, Porto Alegre, 2000). Cite-se ainda um livro de sonetos, em colaboração, Pentagrama (Thesaurus, 2001), em que participamos, ao lado de Antonio Carlos Osorio, Antônio Temóteo dos Anjos Sobrinho e Fernando Mendes Vianna.

            É tempo de falarmos do poeta José Geraldo. A poesia marca sua estréia nas letras e é, decerto, o seu ambiente de eleição. Parece, aliás, ser esse o ambiente da família: Maria da Conceição Pires de Mello, a poetisa Manita, sua irmã e nossa colega na Academia de Letras do Brasil, é, como ele, sonetista de mão cheia. Jota estreou tardiamente, aos 51 anos de idade, mas tem tirado a diferença, contando agora, no gênero, fora as antologias, 16 livros publicados: De Braços Dados (1975, com reedições em 1978 e 1995, esta com o duplo selo ASEFE / Thesaurus), Chama de Amor (1978, igualmente reeditado, com o mesmo selo, em 1995), O Catavento Amarelo (1978), A Mensagem do Arco-Íris e O Biquíni de Filó (ambos na Coleção Machado de Assis, do Comitê de Imprensa do Senado Federal, em 1981), As Folhas que o Vento Leva e Azul no Céu e no Mar (ambos pela André Quicé, em 1983), Devaneio sem Fronteiras e A Banda das Tanajuras (ambos na Coleção Lima Barreto, do Comitê de Imprensa do Senado Federal, 1986), O Itinerário do Vento e A Moita da Perereca (um e outro pela Signo Editora, Brasília, 1992), Canção de Outono (ASEFE / Thesaurus, 1995), No Rumo das Nebulosas e Um Bicho Embaixo da Saia (André Quicé Editor, 1996), Lua Cheia em Céu de Outono e A Casinhola do Pinto (ASEFE, 2000).

            Se a estréia foi tardia, deu-se, em compensação, com um exercício de mestria: os dois primeiros livros, De Braços Dados e Chama de Amor, são coroas-de-sonetos. (Sairia em 1995 a terceira obra na espécie, a do verlainiano título Canção de Outono.) Consiste esse tipo de composição —uso palavras do autor— numa “seqüência de quinze sonetos em que cada um, a partir do segundo, se inicia com o fecho do anterior, devendo o décimo quinto ser formado pelos versos repetidos”. A essa dificuldade Jota acresce as decorrentes de modificações que introduz no esquema da coroa, saindo-se magnificamente do tour de force.

            A poesia josé-geraldiana flui por duas grandes vertentes, a lírica e a burlesca, a que voltaremos com mais vagar. Mas, personalidade vincadamente poética, ainda se dá ele aos versos de circunstância, versos bem-humorados, quando não jocosos, mesmo; inteiramente à vontade no malabarismo do verso, domestica a sextina, a glosa, o acróstico, a paráfrase e a paródia; e tem até a cachimônia —se me permite esta austera Casa a expressão popular de minha infância— de compor longos discursos inteiramente metrificados, orações de paraninfo em alexandrinos ou decassílabos perfeitos.

            Por aí se vê que não estamos diante de um bicho-de-concha, mas, ao contrário, ante um poeta de grande poder de comunicação. Comentando-o, a propósito de A Mensagem do Arco-Íris, disse que seu verso fácil e comunicativo flui como as canções da boca do povo, como água de córrego. E o exemplifiquei com um trecho de composição que qualifiquei como “verdadeira cantiga de aposentado, capaz de matar de inveja a nós outros, escravos adâmicos ainda não alforriados” – se bem que o poeta estivesse apenas de férias... (Mas isso foi há mais de vinte anos; nesse ínterim, pegamos ambos a nossa carta de alforria...) Vamos aos versos, desta vez na íntegra, até porque eles dizem muito acerca do poeta, e há neles pelo menos uma alusão brincalhona a Manuel Bandeira, que fazia versos “como quem morre” (no mesmo embalo gostoso do eneassílabo bimembre):

       FAZENDO NADA

 De estar à toa não me atrapalho;
Que coisa boa não ter trabalho... 

Não me atrapalho de estar à toa;
Não ter trabalho, que coisa boa... 

Fico cismando comigo mesmo,
Sem compromisso, sem hora certa,
Desocupado, vagando a esmo,
E nada pede que eu fique alerta... 

Vem-me a vontade de fazer versos...
Pena a paineira não ‘star florida...
E eu faço versos como quem brinca,
Que isso faz parte da minha vida... 

Ficar à toa tem mil facetas...
Para que a todas vá-me entregando,
Me entrego a uma, me entrego a outra,
E assim vario de vez em quando... 

Sem rumo certo, vou nos meus passos
E entre outras vozes pelo arvoredo,
Eu ouço os melros, ouço os sanhaços.
O Sol se esconde; são mil estilos,
São mil toadas que se entrelaçam,
Em que ouço os sapos, em que ouço os grilos. 

Entre as estrelas, dois luminares
Vejo brilhando, muito serenos:
Pelo Oriente Júpiter brilha,
Pelo Ocidente quem brilha é Vênus...
Inda co’os olhos no firmamento,
Em descuidada contemplação,
Eu vejo a Lua quarto crescente
Dentro das presas do Escorpião... 

Se durmo, durmo, se acordo, acordo,
Sem que me importe se é cedo ou tarde
E algumas vezes já estou de fora
Quando as estrelas inda cintilam,
Quando inda dormem os passarinhos,
Quando inda é tempo de ver a Aurora... 

Recorro aos livros, escolho um deles,
Faço a leitura do meu agrado,
Leio o que quero, nem mais nem menos,
E deixo o livro se estou cansado... 

Eu ando ausente de ver as horas,
O meu relógio pouco interessa,
Que o Sol me indica quanto me basta
E a vida mansa não me dá pressa... 

Fazendo apenas o que dá gosto,
Eu sinto o vôo do beija-flor
E esqueço as penas que há neste mundo,
Nos braços quentes do meu amor... 

Não me perturba viver assim...
Seja bem cedo, de madrugada,
Seja de dia, seja de noite,
Que coisa boa que é fazer nada...

 

            Tendo tido o privilégio de prefaciar Azul no Céu e no Mar, fiz então observações que reproduzo em parte. “José Geraldo —dizia— é poeta de metro e rima, e de linguagem correta e simples, como convém à simplicidade das coisas que canta. São seus temas prediletos o amor, a vida em família, a natureza, a amizade. (Nada de extraordinário ou de exótico; apenas o quotidiano — mas o quotidiano essencial, eterno.) Para envasá-los, prefere o verso mais nobre em língua portuguesa —o decassílabo— ou o mais doce —o alexandrino—, freqüentemente pontuados com o hexassílabo; ou então o mais popular — o de sete sílabas. E a todos domina com discreta mestria de quem longamente afeito ao versificar, mas de todo alheio aos jogos espetaculares. Raríssimos exercícios se permite —o acróstico, a paródia, a glosa—, e, ainda assim, não como tais, porém como veículos necessários a determinado recado poético. Explica-se por tudo isso a naturalidade com que soam ao ouvido do leitor os seus poemas.” Aparentado a neoparnasianos e neo-simbolistas, acrescentava, situa-se “na trincheira do tradicionalismo poético. Não que rejeite quanto se tem feito, em poesia, na esteira das revoluções do século. Apenas, optou pelo código que melhor se afeiçoava ao seu temperamento. Código esse ainda em curso, não como língua morta: como língua viva a coexistir com outras no turbulento universo literário de nossa época, parcialmente caracterizado, aliás, por uma permanente tensão entre tradições e vanguardas.” E ainda: “É, já se vê, a de José Geraldo uma poesia despretensiosa, no sentido de não preocupada com o afã de inovação; mas, dentro da linhagem a que deliberadamente se filia, realizada com apurado manejo das formas; o que a credencia à popularidade, sem renúncia à condição de poesia culta.”

            Sobre sua poética, de resto, ele mesmo assevera, apresentando O Catavento Amarelo, não ter “compromisso de espécie alguma com escolas ou correntes”, mas tão-só com a palavra, sendo-lhe “o processo de criação poética .... algo em que tudo acontece de maneira natural e despreocupada”. Em As Folhas que o Vento Leva, adiciona à sua profissão de fé poética estas palavras francas:

     Quando, com vinte e oito anos, comecei a escrever versos, foi a forma do soneto que adotei de maneira quase invariável, mantendo esse critério durante cerca de dezessete anos. Confesso que só mais tarde, quando comecei a fazer estudos sistemáticos de Literatura e de Teoria Literária, pude me dar conta das influências exercidas, em minha poesia, pelas leituras de juventude.

     Habituado a ser tido por certa gente como anacrônico e passadista, deixo registrado aqui que isso não me comove nem me tira o sono. Não tendo sido atingido pela ânsia de inovação, assumo o direito (e talvez a responsabilidade) de ser o que sou. Não creio que alguém se deva afastar de sua própria natureza para seguir tais ou quais princípios, só porque são modernos (ou apresentados como tais...), porque não creio que modernidade possa ser entendida como critério de valor. Se pudesse, bastaria ser vanguardista para ser gênio...

     Advertido, há muitos anos, de que ao artista moderno se impõe a mais absoluta liberdade, fiz ver duas coisas ao meu conselheiro: que liberdade imposta equivale a bitolamento disfarçado; e que dentro do princípio da absoluta liberdade, eu tinha o direito de ser como melhor me parecesse. É de Rubén Darío a afirmativa de que ninguém escapa ao seu tempo. Creio nisso firmemente, mas não me imponho nenhum preceito no sentido de demonstrar que creio. Prenda-se, pois, quem quiser, à obrigação de seguir tais ou quais tendências; da minha parte, prefiro ser eu mesmo, única maneira de não deixar de ser autêntico.

            Mas vamos à anunciada vertente burlesca. Segundo o dicionário de Mestre Aurélio, burlesco é cômico, satírico, chocarreiro, zombeteiro, caricato. Não conheço poeta com a veia cômico-satírica, irreverente, desabusada às vezes, de nosso José Geraldo. Sua poesia de estilo burlesco é aliciantemente humorística, sabendo incorporar com graça o estapafúrdio, como no gregoriano (de Gregório de Matos) “Pandemônio” e na “Trilogia Delirante”, de No Rumo das Nebulosas, mas não sendo raro imiscuir-se o burlesco no lírico, e vice-versa, embora o poeta procure separar um e outro modo em suas publicações. O burlesco é dominante ou exclusivo em livros que já no título o antecipam. Contudo, não é possível uma separação cabal.

            São tantos os poemas hilariantes e, ao mesmo tempo, formalmente bem realizados nessa modalidade que fica difícil escolher um. A vontade é ir lendo... Mas como é forçoso impor-nos limite, fiquemos neste soneto de A Casinhola do Pinto:

 

   SOBE-E-DESCE
 
 

          tomara-que-caia ia caindo
E ela tomou então a providência

De impedir que ficasse em evidência
O que para a evidência ia surgindo... 

O que fez foi sustar essa tendência
Que a lei da gravidade a tudo impõe
E a blusa suspendeu, mas onde a põe,
Não fica, não... Que dura essa pendência! 

As mãos trabalham e ela se propõe
Conter a blusa... Que ela se distraia
Muita gente põe fé, e como põe! 

A blusa dá trabalho, quem contesta?
A dona luta para que não caia,
Mas se cair, será mesmo uma festa...

 

            Só mais unzinho, já que mencionei o estapafúrdio:


PANDEMÔNIO

 O Rei dos doidos diz, e eu não desminto,
Ser irmão de um profeta japonês
Que vai ao Polo Norte todo mês
Para caçar leões com Carlos V! 

O primo de Pascal joga xadrez
E escuta as ameaças de um juiz
Que de tanto adorar a flor-de-lis,
Comprou mil caminhões de manganês! 

Por causa de um guisado de perdiz,
A avó de Dom João não vai à praia
E encomenda uma tanga de Paris. 

Depois, bebe um tonel de vinho tinto
E para levantar a minissaia,
Ganha um pato, um peru, um porco e um pinto! 

 

            Igualmente fecunda é a lírica, de que dou por primeiro exemplo este belíssimo soneto de O Itinerário do Vento:

 NUMA NOITE FANTÁSTICA

Numa noite fantástica de Lenda,

De mistério, de Sonho, de Ventura,
Eu me perdi pela celeste Altura,
Sem presumir meus passos nessa senda! 

Vi a razão vencida na contenda
Que travou co’o delírio... Na aventura,
Passei por mil galáxias, na ternura
De um mundo mago que se me desvenda. 

Minha fascinação pelo Infinito
Dita meus rumos... Entre louco e aflito,
Sinto uma ânsia brutal! Como contê-la? 

Pela Amplidão desfilam nebulosas
E ante as divagações mais fabulosas
Eu beijo a mão de Deus em cada estrela! 

 

            Para demonstrar a fulguração de sua lírica amorosa faço esta colheita em Pentagrama: 

                      ITINERÁRIO

 

Amei-te o quanto a alguém se pode amar,
Sabendo que te amar é minha sina,
Sabendo que és a chama que ilumina
Os caminhos que eu ando a palmilhar. 

Das graças que esta vida me destina
Tu participas hoje, como outrora,
E como ontem te amei, eu te amo agora,
Neste passo em que a vida já declina... 

Dias, meses e anos... Barra afora,
Segue o Tempo o seu longo itinerário,
Eu sigo o meu, te amando hora por hora. 

Antes te amei em teus sorrisos francos,
E na incerteza deste mundo vário,
Amo-te agora em teus cabelos brancos... 

 

            É quanto basta, creio, para dar a medida do intelectual polimorfo, do prosador estimável, do admirável poeta. E com isto concluímos.

            Por suas raras qualidades humanas, pela variegada opulência de seus dotes de escritor, José Geraldo enriquece o quadro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.

Página republicada em julho de 2016

 

 

 
 
 
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