HERMENEGILDO BASTOS
Nasceu em Salvador (BA), em 1944. Está em Brasília desde 1966. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Concluiu o pós-doutorado na Universidad Nacional Autónoma de México, em 2004. Foi professor convidado da UNAM em 2003 e 2004. Atualmente é Professor Associado da Universidade de Brasília.
Bibliografia: A dança (1968), O Pássaro-Inspeção (1970), Autópsia de sombras (1997). Diversos trabalhos publicados na área do ensaio.
Seleção e organização de Salomão Sousa
De
O PÁSSARO-INSPEÇÃO
Brasília: EBRASA – Editora de Brasília, 1970
“É a súmula de um ajuste de contas com a própria poesia. O que foi itinerário quase discursivo em A Dança, livro inicial, retorna com intensidade, neste polígono lírico que é O Pássaro/Inspeção, à matriz de expressão poética: a metáfora — fulgor e síntese, elo e distinção, semente e flora do pensamento mágico.”
Eudoro Augusto.
prefácio
1
o mito não de desvenda.
mas há outros véus ou metros — metros em si próprios.
véus são o claro e o obscuro.
2
o misterioso, véus sobre véus.
porém o mistério
(eu não canto)
penso
— véu original.
3
ó cidade lógica, horizontal.
lógico é o seu contorno,
aquela linha sobre o contorno, cartão-postal,
a linha da qual as formigas fogem.
4
metrificar, auto-pensamento.
e o drama
(ou epopéia? ou comédia?)
— a ânsia de uma geometria
porém da terra.
5
poesia, inacreditável simetria.
os futuros
(sua vegetal percepção)
sabem.
6
demasiado tudo.
humanas coisas, seu falar
demasiado.
30
do planalto central
eu medito o centro
dentro e fora
porque as mãos independem,
e eu
não sou apenas
o que faço.
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GALDINO OU A MORTE POR DIFERENTE
I
O final precedido pelo descuido:
“lesão corporal seguida de morte”
Outro final: a morte por cálculo:
no corpo estirado na pedra
os litros de fogo e álcool
Quem folheia o catálogo
da morte, e escolhe?
A morte por lapso, indiferença
a dele, a mais violenta
quando o corpo ao calor se encolhe
II
Os termos são:
1 — “O meio cruel”: a cama industrializada
com acabamento em chama
2 — “O motivo torpe”: o cinema
de bairro da agonia
3 — “A defesa impossível”:
na fuga sem pernas corre a lava
Queimado por esporte
inteiro morreu Galdino
tríplice morte
III
Pataxó eu também
sem bordunas, flechas
e outras mágicas
martelo as flautas
do réquiem:
ora igual, ora impossível
como reconhecer um homem
se só o ouvimos ao longe?
se só o vemos remoto, longínquo
como reconhecer um homem?
pelas vestes que protegem o corpo?
pelo corpo sem mais, em pele, queimado?
pelos gritos como palavras?
Um homem, como ele é por perto?
frente a si mesmo, cara a cara?
como reconhecer um homem, sua laia?
Indistinto é o homem?
Somos todos o tanto?
Ou nem tanto, ou só enquanto
o olhar fotografa e esquadrinha?
IV
À míngua, ou por excesso
ora igual e por isso distinto
ora distinto e então desigual
O jaez
faz
a diferença:
um homem não está pra se reconhecer
mas quem à dessemelhança
se reconhece
O SER E O NADO(A)
A poesia já está pronta
fora do poeta
como a vida
completa
O poeta vai e fere a poesia
quebra-a, destrata-a
mas não a esgota
Daí essa coisa gritante
que é ter o poeta
de fazer novos
poemas sempre
mas não como o rio dá peixe
sim como o peixe
na sua prática de rio
reinventa o nado
FALAR OUTRA LÍNGUA
Aqui aportei primitivo
em fábrica de alguns utensílios:
suelo, cuerpo, árbol
ya me contestan por sus nombres
por mi nombre me contestan
Finco em cada lugar um novo acento
la lámpara orienta o olhar
educa-me na rosa dos ventos
Organizo vozes, recojo paisajes
meço os terrenos, esquadrinho as margens
Soerguer la casa sílaba a sílaba
o chão por onde ir os pés
construir las ventanas é já abri-las
Fico de pé e inteiro estou em casa
e, tipógrafo, dibujo el verso:
la fora el temblor, la ciudad de México
DEPOIS DE DRUMMOND
Ontem: “mercadorias espreitam-me”
assim solenemente
Mas para ser sincero era recíproco
— ele também as espreitava
talvez mais jocosamente
ao infinito
Hoje deram o bote
já não há margem para espreitar
tudo é tediosamente excitante
A alma-corpo da mercadoria
clone sem máculas ou defeitos, o homem
enfim superior
colagem de mil pedaços
geneticamente selecionados
de inúmeros cadáveres
de onde se retiram os brilhantes
os catarros, ódio e outras imperfeições
Sem olhos, as coisas se espreitam
De
Hermenegildo Bastos
AUTÓPSIA DE SOMBRA
Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
ISBN 85-7388-814-7
As coisas que há
ofertam-se à mão
se deixam penetrar
como folhas
Memória
aberta pro lado de fora
(desativado o gesto)
os dedos do contato
Pedaços autônomos
sem rasuras ou emendas
em que eu tropeça
eu se acha
Limites do mundo vário:
porta, ancoradouro, chão
Atendem por nomes próprios
presenciam o desconcerto de eu
lhe toleram os delírios
a solidão
BASTOS, Hermenegildo. Palames. Capa: projeto e
realização de Antônio José (Anjo). Brasília, DF:
Thesaurus Editora, 1985. 113 p.
Exemplar doado pelo livreiro BRITO, de Brasília -DF.
Exemplar da biblioteca de Antonio Miranda
PALAME
O móvel, o imóvel
O quadro, o vocábulo
A foto, o cinema
Joselina coloriu
E me deu
sem por título
só o prólogo, o tema
E entre o painel
e o nome,
ausente
a foto, o relâmpago
o olho, o mágico
Parmênides, Heráclito
O móvel, o imóvel (à venda)
No livro agora, a placa
(à venda)
recobre a parede
O pulso, a pressão
O mostrador do relógio
A hora, redonda em números
O móvel, o imóvel
O livro, a obra
O alvo, o revólver, o estampido
O ouvido, a cápsula, o verso, o timbre
A roleta russa
Nascimento se morte
o poema lírico
Na tela, o velame. E lá
no onde a parede se vinga
e vence
os passos se perdem. Migram
Deslocam-se as sílabas
A pá
a lã, a página
E lambida
E dócil
final, a átona
no fluxo, corre: palame
Lâmina
inteiriça
De alumínio. Nódoa
de amêndoa
Contemporâneo corte
A viagem, a fome
Fatia de tempo
O curso, o retrato
O bico de pena
Janelas de um trem
paradas, em movimento
 |
BASTOS, Hermenegildo José. Crítica do desjuízo. Capa: Resa. Realização; Bric a Brac. Impressora: Simprograf. Brasília: Editora Anchieta, 1990. 72 p. No. 10 396
Exemplar da biblioteca de Antonio Miranda
DÁ PRA VER — O REAL
O mundo nasce
na oficina
rente à casa
Orvalho etiqueta
os corpos
alfândega-madrugada
Depois, num abrira de olhos
é humano. Ensacam-no
Levam-no em latas
para os grandes centros
Negocia-se
Nasce aqui em flor, o real
e quando se vê
é de lei
São armas, segredos, engenhos
Mas são vestes
mais que tudo
do amoroso convívio
O homem é isto
o homem no térreo da loja
de tecidos — aí tem tudo
e se se quebra
também já era de se esperar
Tem tudo aí que produzido
— crianças, cordas, utensílios
e até poema
se isto for um
Tem tudo igual e se repete
Até que alguém vai
nesse alvoroço
enfia a mão na terra úmida
e molda
Selo de origem
O real nasce aí — dá pra ver
na oficina junto à casa
e a mão da gente nesta hora
é selo de pedra
alfândega-madrugada
Nem todos se levantaram ainda
nem viram passar o mundo
e ele só nasce do jeito
fecundo que tem
Pensa, a gente
que assim é o mundo
porque é
— tal uma árvore, mapa, osso
como a criança acha
que chega até suas mãos
o fruto, saído da terra
sem o selo de máquina das mãos
Dá pra ver, da vidraça
nos pré-moldados
por entre as misturas, nos ossos
nos filamentos
e estátuas de barro
dá pra ver, nesse alvoroço
que o mundo nasce
rente à casa
na oficina aqui de junto
do jeito único que tem
alfândega-madrugada
o cio ininterrupto do mundo
com o selo de mão da máquina
por onde o real vem
CANÇÃO
Orvalho e noite
descongestionantes
de incerto pouso
e momento errante
na madrugada
É pouco mais que nada e tudo
ou procura de fogo
que se vê e não inflama
pois quando muito
vislumbra-se no espaço
alter
nada ponte
ou fôlego
da imperfeição renovada
E aí, com o sol a pino até, quem sabe
ao ensejo da pane
orvalho e noite, rebeldes, se instalem
descongestionantes
BOTÃO DE FLOR
A esperança que ainda não nasceu
é a última que morre
E não lhe falta alimento
come de tudo um pouco
ou um pouco mais
do que ocorre
E que o mundo não chega
ao segundo milênio
é do que se fala
O mundo tragado
por fogo ou água
o que mais se comenta
Vamos, poupemo-la
nós que viemos antes
se guardamo-la no peito esfarrapado
e olhos sem brilho
Nisto ao menos sejamos grandes
*
Página ampliada e republicada em agosto de 2025.
*
Página ampliada e republicada em agosto de 2025.
Página publicada em março de 2008; ampliada e republicdada em maio de 2010. |