CRISTIANE SOBRAL
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1974, e reside em Brasília desde 1990. Como escritora, possui poemas e contos publicada na Antologia Cadernos Negros, edições 23, 24, e 25. Graduada como atriz habilitada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, sendo a primeira negra a ganhar o título acadêmico.
Página da autora: http://crisobral.sites.uol.com.br/
De
Cristiane Sobral
Não vou mais lavar os pratos.
Brasília: Athalaia Gráfica e Editora, 2010.
125 p. (Coleção Oi Poema, v. 3)
Freud explica
Nunca confiei em estranhos
Talvez porque a transição
do indispensável leite materno
para a rude colher inoxidável
condutora da alimentação sólida
tenha sido feita de forma brusca,
com "papas", insossas,
colocadas à força
em minha boca ainda sem dentes
Não Vou Mais Lavar os Pratos
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos,
a estética dos traços, a ética,
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros,
mãos bem mais macias que antes,
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Qualquer coisa
Não vou mais lavar. Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco.
Tenho os olhos rasos d'água
Sinto muito.
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri
E deixei o feijão queimar...
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros...
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto.
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato,
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada,
e olho a sujeira no fundo do copo.
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo,
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata, cozinha de luxo
E jóias de ouro.
Legítimas
Está decretada a lei áurea.
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PETARDO
Escrevi aquela estória escura sim.
Soltei meu grito crioulo sem medo
pra você saber:
Faço questão de ser negra nessa cidade descolorida,
doa a quem doer.
Faço questão de empinar meu cabelo cheio de poder.
Encresparei sempre,
em meio a esta noite embriagada de trejeitos brancos e fúteis.
Escrevi aquele conto negro bem sóbria,
para você perceber de uma vez por todas
que entre a minha pele e o papel que embrulha os seus cadernos,
não há comparação parda cabível,
há um oceano,
o mesmo mar cemitério que abriga os meus
antepassados assassinados,
por essa mesma escravidão que ainda nos oprime.
Escrevi
Escrevo
Escreverei
Com letras garrafais vermelho-vivo,
pra você lembrar que jorrou muito sangue.
(Poema extraído da obra O NEGRO EM VERSOS, organização e apresentação de Luis Carlos dos Santos, Maria Galas e Ulisses Tavares. São Paulo: Moderna, 2005
Antologia da Poesia Negra Brasileira. ISBN 85-16-04760-1 Excelente, imperdível!
Metadados: Poesia Negra; Negro na Poesia; Poesia social
GRUPO OIPOEMA na Pré-Bienal Internacional de Poesia,
Brasília 14 e 15 de outubro de 2010
No alto: Angélica Torres Lima, Bic Prado, Nicolas Behr. Sentados: Cristiane Sobral, Luís Turiba, Amneres. Foro: Ivan Malta
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