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   JUDITH  GROSSMANN     Escritora,  poeta, ensaísta e, apesar do nome, brasileira, em 1966 e aos seus 35 anos, vai  para a Bahia, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro lhe parecia, como dito em  depoimento, redundante, fazendo, assim, o movimento inverso ao de tantos outros  personagens que se dirigiam ao Rio em busca de um “saber viver” que a cidade  oferecia. Caminha, em direção a Salvador, na expectativa de fundar alguma  coisa.    Professora  de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia a partir de então e,  na condição de estrangeira, Judith passa a se empenhar na produção de Oficinas  de Criação Literária, algo que lhe conferiria, anos depois, o pioneirismo na  realização desse tipo de atividade no Brasil. Propositalmente exilada e longe  da família, se instala em terra estrangeira e, porque assim, necessita  construir sua linhagem para dar continuidade a si mesma. Como todo clandestino,  enfrenta os olhares enviesados na academia que a recebe. E com êxito, movimenta  o cenário local: suas oficinas entrariam futuramente para o currículo do curso  e, ao lado de alguns professores, ajudaria na concretização de uma  pós-graduação em Letras na UFBA.           Filha  de imigrantes russos, Judith carregará o símbolo da sua diferença para o texto  e para a vida. Nascida em Campos, RJ, em 1931, a escritora  fantasiaria uma existência entre o exótico e o segredado. Nas linhas da ficção,  rabiscaria os liames de sua genealogia à inventividade de um sujeito que se  pretende biografável.  Ana Lígia Leite e Aguiar  TOTEM no.  1 revista cultural.  Junho / 1974 — órgão  do d. a. da faculdade filosofia e letras de cataguases.   Cataguases,  MG: 1974.  Edição mimeografada.   De Judith GrossmannVÁRIA NAVEGAÇÃO: MOSTRA DE  POESIA
 Capa de Floriano Teixeira.
 Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1996. 182 p.
 (Casa de Palavras. Série Poesia)
       O tomate-fantasma
 No início do dia
 Toma-se um tomate
 Já bem escolhido de antes
 Entre a multidão de tomates.
 Pesquisa-se com o olhar
 O segredo do vermelho
 E com a mão a regra do cetim.
 Lava-se o mesmo com cuidado
 Enxugando-o numa toalha adequada
 À textura de sua epiderme.
 Corta-se o tomate
 Em delgadas rodelas
 Com uma faca serrilhada
 Colocando-se o mesmo
 Num prato de louça branca.
 Rega-se o tomate
 Com óleo
 Acrescentando-se sal a gosto.
 Na varanda se degusta
 Em finas fatias de torradas
 O pomodoro
 E nele também se degustam
 Um por um
 Os ademanes do pai.
 
   Sonho Causado por uma Enguia Um Segundo Antes de Despertar     Uma enguia visitou-me em sonhos  Escorregadia  Esganando-me a goela.  Ou era o sempre cipó  Do soneto de Jorge de Lima  O mesmo que esmagava florestas.  E eram multidões de estrelas de sangue  Rubro tinto  Com certeza o de Augusto dos Anjos   (Oh! o cansaço dos bisavós)  E as árvores implorando pausas sestas   De Millet e de Van Gogh.  E todos os brios do campo  Para ofertar às criaturas mortas de sede.  Urubus voejavam  E a sorte era  A carne túrgida  Servia ainda de amparo  Ao espírito-mola  E nunca venceria a envilecente fadiga.  — Até o fim — rugiam as doces feras  fraternas  Até o fim!   Era o repique de um sino  E era o tigre ele próprio  Com seus coruscantes olhos de William  Blake.  E para além do sonho  O real puro absoluto.     A Visita Inesperada    Estamos sentadas aqui   Matilde  Sua neta Cibele  E eu.  É a sala de uma casa de alta resolução   E quedamos as três inteiras dentro  dela.    Cibele sonha com chocolates  Matilde sonha em agradar-me  E eu não sonho com nada.  Matilde olha os livros  Os papéis  Não vê outra coisa  E me confia feliz:  "A sua é uma vida bonita  Tudo quieto  Tranqüilo..."  E eu surpresa com tamanha súbita  compreensão  Deixo o momento ficar boiando  Como um lustre na sala.     O Engenheiro    Na química e cardápio desta minha mente,  Que se projeta e lança em pós de uma  miragem,  Penetram lobo e lobisomem, mas não gente,  E os venenos da terra engole com voragem.  O que existe inexiste em seu esquema frio,  E se por bem o que inexiste é existente,  Traz-lhe pouco ou nenhum contentamento e  brio,  Pois rápido recusa o sonho feito em ente.  Ferro, vidro e metal, na cidade de barro,  Atrás, à minha frente, todo o espaço é  vago,  Meu corpo é a só área e tempo em que  naufrago.  No que a mão toca escarro e nas quinas  esbarro,  Vegetação não medra e o sonho se desgasta,  Obrei destruir-me, mas é bem pouco, não  basta.       A Hora    Seguidamente doce música ouvi,  Audível só ao coração atormentado,  Aves gritantes, nas alturas, revivi,  Esferas sônicas, o espírito endoidado.  Estava eu contida em alto leito alvo,  Compartilhando o escuro, mãe de minha  filha,  E pressenti vozes do espírito já salvo,  Álgido corpo debatendo-se em ilha.  Lançada após a um outro cômodo escuro,  Onde era cega, tive tinta e pergaminho,  Quando explodi por vã janela ao ar mais  puro.  Voei no vento, soluçando no caminho,  Baixei os olhos, aceitei o contratempo,  Provisional testemunhar o tempo aflito.       Exemplar  gentilmente cedido por nossa amiga Myriam Fraga.         Página publicada em janeiro de 2010.
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