Língua
                         
                        Mpurukuma,  Língua, corpo quase, 
                        o que sou  de sobrepostas vozes, 
                        Bayete! 
                        E tu,  pássaro da alma, Mpipi adejando 
                        sobre o  losango tumultuante de cores, 
                        Templo  onde me cerco, 
                        não me  abandones, cão inflando para o rio 
                        uma  escarninha balada que nos enforca. 
                        Esfumou-se  a Torre na praia nocturna, 
                        a  preposição que olfactava o nervo 
                        e Ele  dorme ainda e expulso. 
                        Quando a  palavra surge, inteira, das águas 
                        e os  espíritos batem a respiração do batuque, 
                        Ele  tacteia os nomes nas abóbadas de sangue 
                        e entra  pelo silêncio, dobrando-se 
                        em  número. 
                        Leva-o  nas tuas asas, ó sombra 
                        que as  patas de cinza espargiram no vento, 
                        soluço de  Leanor 
                        em  saínhos sete de capulanas mil, 
                        Ilha  mineral, Mpipi hílare no azul 
                        onde me  cego. 
                        Que  sinais sobre que mar do exílio ou 
                        som de  algas lavando-te o rosto, se inscreveram 
                        em ti,  mulher larga no Índico, 
                        língua  por dentro dos lábios cavando, obscuro, 
                        um reino  por achar? 
                        Língua,  Mpurukuma quase. 
                         
                         
                        Depois das elegias
                         
                        depois  das elegias o alcandorado grito
                        sobre o  deserto chão do poema,
                        desinventário  de européis no fulgor
                        em  barrocas cornijas de caniço ao alto,
                        a chuva,
                        e o chão  ele mesmo vertigem,
                        as  estiradas praias de silêncio
                        no tapume  como ínsulas do incerto mar
                        na cidade  dos cedros, sonetos antigos,
                        negreiros  tijolos de incisões
                        a  desaguar
                         
                         
                         in Cadernos «Diálogo» 1
                        As Palavras Amadurecem – 1988
                         
                         
                        Metamorfose
                         
                        a Mãe não  era ainda mulher
                        e depois  ficou Mãe
                        e a  mulher é que é a vagem e a terra
                        então  percebi a cor
                        e  metáfora
                        mas agora  morto Adamastor
                        tu  viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
                        das  mambas cuspideiras nos trilhos do mato
                        falemos  dos casacos e do medo
                        tamborilando  o som e a fala sobre as planícies verdes
                        e as  espigas de bronze
                        as  rótulas já não tremulam não e a sete de Marco
                        chama-se  Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
                        de  satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
                        a  natureza e o chão no parnaso das balas
                        falemos  da madrugada e ao entardecer
                        porque a  monção chegou
                        e o  último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
                        num  silêncio de rãs a tisana do desejo
                        enquanto  os tocadores de viola
                        com que  latas de rícino e amendoim
                        percutem  outros tendões da memória
                        e  concreta
                        a música  é o brinquedo
                        a roda
                        e o sonho
                        das  crianças que olham os casacos e riem
                        na  despudorada inocência deste clarão matinal
                        que tu
                        clandestinamente  plantaste
                        AOS  GRITOS
                         
                         
                        in Cadernos «Diálogo» 1
                        As Palavras Amadurecem - 1988
                         
                        
                         
                        De
                              Luis Carlos Petraquim
                          O OSSO CÔNCAVO
                            e outros poemas
                        Organização  Floriano Martins
                          Artista Convidado Fernando Pacheco
                          São Paulo: Escrituras, 2008
                          174 p.   ISBN 978-85-7531-314-5
                        
                         
                        
                          Luís Carlos Patraquim reúne em O Osso  Côncavo e Outros Poemas (1980-2004) , simultaneamente título de um novo volume  de poemas, e desta antologia pessoal, grande parte dos seus poemas, publicados  anteriormente em Monção (1980), A Inadiável Viagem (1985), Vinte e tal Novas Formulações  e Uma Elegia Carnívora (1991), Mariscando Luas (1992) e Lidemburgo Blues  (1997).
                         
                        O  poeta é uma das vozes mais inovadoras da nova poesia moçambicana, que se revela  logo no início da década de oitenta, demarcando-se da temática geral da  exaltação ideológica. Uma opção de escrita, e de um percurso intertextualizado  em outros textos da poesia moçambicana, que distinta e originalmente se destaca  pela procura de um itinerário próprio, alicerçado em propostas anteriores,  reformulando-as, e que inaugura diferentes vertentes para a lírica moçambicana.
                         
                        É um  percurso que se concretiza numa textualidade onde se revela e, ao mesmo tempo,  se rasura a dimensão de natureza ideológica, que se inscreve, todavia, obtusa e  transversalmente. Prática que contrasta com a postura, muitas vezes, vitoriosa  do discurso mimético e pleno, erguido da então recente conquista da  independência política. Escolha porventura difícil, subvertendo a monção  favorável do slogan, da palavra de ordem e, digase também, o vazio editorial  que, na altura, o primeiro livro do poeta veio preencher.   ANA MAFALDA LEITE
                         
                         
                        Estive com Luis Carlos  Patraquim, em Fortaleza, durante a memorável Feira Internacional do Livro do  Ceará, organizado por nosso amigo comum Floriano Martins, e o poeta  ofereceu-me, com uma generosa dedicatória, sua antologia O OSSO CÒNCAVO E  OUTROS POEMAS, lançado no Brasil, bela edição ilustrada pelo artista plástico  Fernando Pacheco. Aqui vai uma seleção de seus magníficos poemas.  Antonio  Miranda
                         
                  ACONTECIMENTO
                              
                          sobre as espigas trémulas
                          os pássaros migram
                          para os meridianos virgens
                          do eu rosto no vento
                          a densidade da boca
                         
                         
                        A VOZ  E O VENTO
                              
                          com palavras faço a voz
                          e o vento
                          de que viajam e são
  
                          insistente desejo a lucilar
                          sobre a pele morna
                          de girassóis filtrando
                          teu rosto
                          seios
                          paisagem nua de ventre
                          com palavras a voz do que faço
  
                          estes dias infensos
                        a pendor de gume
                         
                        
                        
                REMINISCÊNCIA
                                
                          às vezes o exílio
  é uma árvore aberta
                          na imponderável noite
  
                          e nada espreita
                          a estrada larga
                          fonte do olhar
  
                          principia como um homem
                          multidões ao vento
                          a terra exangue
                        o grito arável
                         
                        
                           
                        CANÇÃO
                         
                        Para a Paula
                          
                        chegarei  com as árvores 
                        meu amor  ao som do sangue 
                        às  catedrais do puro gesto 
                        com o  grito e as aves 
                        marítimas  dentro das sílabas 
                        ao breve  cume da espuma 
                        mãos nas  mãos chegarei
                         
                        chegarei  com as espadas 
                        areia  verde dó planície 
                        ao tutano  meu amor da fome 
                        com os  frutos nos teus olhos 
                        amante  vento à espera 
                        ao sexo  nuclear do mundo 
                        nervo a  água chegarei
                         
                        chegarei  nas manhãs suadas 
                        da voz  meu amor liberta 
                        à  nocturna onda do poema 
                        com as  aves dentro do grito 
                        ou só  marítimo eco 
                        à raiz  exígua dos cristais 
                        morte a  morte chegarei
                         
                        chegarei  de pé ao silêncio 
                        que vaza  meu amor nos rios 
                        remo a  canto deslumbrados 
                        contigo  ao princípio chegarei
                         
                         
                        NATUREZA VIVA
                              
                          Que o figo avermelhe a teu desejo,
                          Ovo granular, constelação;
  
                          E a polpa verde-escura,
                          Túmido impulso ou queda arborizando-se
                          Dentro dos ossos, te envolva,
                        Como estirada jaz a pele da infância.