|   MARIA AZENHA Maria Azenha (Portugal). Foi professora universitária. Tem mais de duas dezenas  de livros publicados.
  Oito poemas
 na rebentação das mãos
   Afinal_    Gosto de me sentar imóvel sem pensar em nada a página é o meu observatório humano aí faço anotações do quotidiano falo em voz baixa e escrevo algumas palavras de ofício algumas resistem outras apagam-se quase sempre a folha de papel em  branco se me perguntam porque o faço respondo: “ não sei”  afinal é isso o que conta              À  luz do dia_    (A verdade é uma mentira. A mentira,uma grande verdade.)    Hoje encontrei um homem. Geralmente acompanha-o uma garrafa. Uma figura alta, passageiro nocturno  com dormitório em vão de escadas. A avaliar pelo exterior, antigo,  barbas brancas, moreno e olhos amendoados.   Falava em voz alta. “Comprei um filme aos ciganos, por  cinco euros, na feira do relógio.”   Ria e gargalhava com o embrulho de  fiambre que, jurando a pés juntos, seria do melhor bacalhau do mundo . E ria, ria, olhando em todas as  direcções. Não sei se por simpatia ou se pelo facto de ninguém fazer menção de  lhe devolver um aceno verbal.   Por fim, parecendo anunciar algo  como uma notícia de última hora, elevou o tom de voz e proferiu:   O menino Jesus bateu no Papa! O menino Jesus bateu no Papa!   Apeteceu-me bater lágrimas.                 Há dias terminados em ão outros em  ões_    Quem não deve não teme alguém vai ao leme   il  y a la grandeur et puis la merde              Como  será estar morto durante duzentos anos_    Como será estar morto durante duzentos  anos? O que diria Sócrates? A vida não tem sentido, quem o disse foi Tolstoi. E Freud? Outro cismático! Eu que fiz análise durante vinte  anos tornei-me um humano ainda mais  pessimista. O meu analista aconselhou-me a abrir  um paraíso mas eu tornei-me político! E aquela mulher que faz exercício  todos os dias depois do trabalho e a seguir leva para casa um punhado  de sacolas do Pingo Doce? A vida é cheia de solidão,  infelicidade e caveiras dos outros. Ultimamente têm-me passado coisas  estranhas pela cabeça, estou a ficar mais gordo e custa-me  dobrar os joelhos. Talvez um dia encontre um amor com  dentes de ouro e cheio de banhas para amortecer os  desgostos. Ora bolas, afinal para que é que  servem os espelhos? Vou passar um fim de semana a ver  filmes de Manoel de Oliveira. E se eu acreditasse em Deus ? Talvez fosse uma boa solução! Mas eu estou desactivado do céu. Sou o que se chama um militante  holístico. Dizem que há um “ olho” que nos está  sempre a ver Por acaso vivi durante onze anos com  um oftalmologista e nunca me receitou óculos. Os que  ponho actualmente são para Ler livros sobre a  vida-em-morto. Tenho muitos medos. Devoro livros em  Braille toda a noite. Ando obcecado pelo tema dos esgotos. Deve ter sido por isso que gosto de  Esopo que me ensinou um processo fabuloso  para exterminar o medo. Há uma substância química no nosso  corpo que faz com que não sejamos  galinhas. E outra, que nos faz irritar uns com os  outros. Já sei porque me irrita o governo. E  os políticos e os do arco do poder. O tema da morte é mesmo um tema  assombroso. O preço do gás está a subir. “Todas as tentativas de suicídio são  um fiasco. Vivo abrindo as janelas e fechando o  gás”. Não sei como os mortos conseguem  viver. Mas acho que devem ser pessoas  fantásticas.                        O  Poder_     (A História repete-se sempre, pelo menos duas  vezes, disse Hegel.  Karl Marx acrescentou: a primeira  vez como tragédia, a segunda como farsa.)    Os felinos saltam de imagem em  imagem pronunciam palavras de logro e  silêncio há vozes que não se ouvem atravessam as rodas da noite com uma  cruz de cinzas na boca   e o poema vai rodando de máscara em  máscara em demência e esquecimento na jaula  de um louco   dentro dele mesmo o inferno o mando  e o medo o Poder não sabe o peso da boca de  um morto
            Sentada  no banco das aves_    No autocarro vi uma mulher de dentro  para fora Que tinha visto de fora no banco de  espera. Todas as terças me cruzo com esta  mulher Que reza o terço para dentro de um  saco de plástico. Já vi os seus olhos virados para o  céu No espelho escuro da mão com um  pássaro. Alguns homens que passam dizem que  ela Traz o número branco da morte Buscando em vão a loucura que salva. Esta mulher caminha descalça Oferecendo a Deus o seu sexo Sentada no banco de neve das aves Num poema de Inverno.                       (Des)habitada  casa_    Com o tempo fui-me habituando a não  pensar a dar pouca importância à lógica a largar a casa o corpo os móveis substituindo os braços por telas pintadas a óleo   não habito lugar algum sou como árvore carregada de frutos na penumbra às cegas sem destino nenhum   se não os colho tombam por terra - versos diariamente escritos, filhos sem pai nem lua - insectos caídos do tecto                         A  três dimensões_    Entrego-me à volúpia dos cinco sentidos. Regozijo-me em espreitar algumas  equações Olhar por dentro como é feito o  mundo O rapaz a quem dou estas e outras  explicações cheira mal da boca. Começo a fumar o meu cachimbo E vão surgindo soluções a cada  andamento que acompanha os sucessivos traçados  na folha.   Assim no papel. Assim na vida.   Vai crescendo um nevoeiro entre mim  e o rapaz tem uma prótese nos dentes.   Vem aprender poesia a três  dimensões.       REVISTA  TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciênciasnova série | número 47 | agosto-setembro | 2014
 © Maria Estela  Guedes  PORTUGAL
 
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