Girondo é paradoxal, instigante, desconcertante. Seu conterrâneo   Jorge Luis Borges reconhecia publicamente não apreciar a sua poesia: "Girondo es   un violento. Mira largamente las cosas y de golpe les tira un manotón. Luego,   las estruja, las guarda. No hay aventura en ello, pues el golpe nunca se   frustra".
        Aliás, muito pelo contrário. Girondo se aventura aos limites de   uma poesia encarnada, denunciadora, demolidora de mitos e valores. Um   vanguardista.
        Girondo estréia em 1922 com um livro incomum: Veinte poemas   para ser leídos en el tranvía. Ainda havia bonde. Ele assustava um público   cultor de crenças e estilos literários edificantes, românticos, bem comportados,   próprios para os saraus literários. Girondo vomitava... Nâo era para ser lido no   salão, preferia o bonde, a rua. Como explica seu antologista Aníbal Jarkowsky:   "Sin que resulte contradictorio, de la poesía de Girondo puede decirse que es   moderna porque es sincera pero autobiográfica; porque es sensual pero   insensible; porque es extraña pero espontánea. Acaso como Dante, que percibió y   lamentó la pérdida de un mundo e imaginó detenerla con un simulacro de   eternidad, es probable que Borges no apreciara la poesía de Girondo porque en   ella advertía, no sin espanto, que el siglo XX había comenzado." 
        Poeta considerado materialista, iconoclasta, maldito. Das   palavras dessimbolizadas, sem muita ou nenhuma metafísica, palavras-objetos,   diretas, anunciando e denunciando sentidos e sem-sentidos. Tem a liberdade e a   naturalidade dos surrealistas no ato de produzir, de sonhar, sem barreiras   psicológicas ou morais, mas não ficou no automatismo do subconsciente. Ao   contrário, é lúcido, objetivo e preciso, numa linguagem lavada e até mesmo   despoetizada. Mergulha no eu intranscendente, sem esperanças, sem   remissão.
        Tem muito do esperpentismo, de grotesco e até de escatológico,   sobretudo nos livros seguintes - Calcomanías (1925) e Espantapájaros (1932), culminando com Persuasión de los días (1946) e com o desconcertante En la mesmédula (1956). Girondo era também   artista plástico - a la Goya, esperpêntico...- e sua poesia reflete muito das   imagens que vão deixando de refletir o mundo exterior, do concreto para o   abstrato, criando poemas-quadros, pinturas verbais desfigurantes.
        Andei por Buenos Aires em minha juventude (1962) e cheguei a ter   uma breve entrevista com Jorge Luís Borges, levado pelo meu amigo Manuel Mujica   Láinez. Borges já era a figura máxima das letras argentinas - Manuel Mujica   Láinez também vivia a sua glória literária - mas Girondo devia ser um autor de   minorias, uma espécie de marginal das letras mas com seu público certo,   minoritário. Não tive - ou não me lembro... - de ler ou ter ouvido falar de sua   obra. Certamente que ela teria causado em mim o mesmo (ou ainda maior) impacto   do que causaram os versos de César Vallejo, de Ernesto Cardenal, de Nicanor   Parra.
        Só descobri a obra de Girondo em 2002 quando caiu em minhas mãos   um exemplar da excelente revista brasilense de literatura Gárgula, no   único número - infelizmente!!! - de sua existência. O texto "Oliverio Girondo -   a palavra no fio da navalha" com poemas nas versões originais e traduzidas ao   português por Antônio Máximo Ferraz. O ensaio de Ferraz que antecede a seleção   dos versos de Girondo merece ser lido por sua amplitude e capacidade analítica e   parece sugerir que Girondo influenciou alguns de nossos poetas   modernistas.
        Na penúltima viagem (2002) que fiz à capital argentina, com meus   amigos Victor Alegria, Anderson Braga Horta, José Jeronymo Rivera e Santiago   Naud - íamos todos os dias - ávidos! - às livrarias, mas eu ainda não conhecia o   poeta Girondo. No ano passado (2003), saí à busca de sua obra, por sorte toda   ela disponível em edições recentes.
        Desse encontro com a obra extraordinária de Oliverio Girondo   veio a idéia de divulgá-lo entre os leitores de poesia no mundo lusofônico. Em   edições futuras desta página pretendemos revelar outros poemas mesmo sabendo que   Girondo é para uma leitura reservada, longe dos grandes holofotes, para   iniciados, para um público especial.
         
        FERRAZ, Antonio Máximo. Oliverio Girondo - A Palavra no Fio na   Navalha. Gárgula - Revista de Literatura, Brasília, N. 1, 1997, p.   24-35.
        GIRONDO, Oliverio. Textos selectos. Selección y prólogo de   Aníabl Jarkowski. Buenos Airtes: Corrregidor, 2001. 125 p.
        
        
        POEMAS DE OLIVERIO GIRONDO
          tradução de 
  AUGUSTO DE CAMPOS
          extraídos da revista
  QORPO ESTRANHO - CRIAÇÃO INTERSEMIÓTICA
          N. 2   SET-OUT-NOV-DEZ 1976
        
              O PURO NÃO
              
          o não
  
          o não inóvulo
  
          o não innão
  
          o não pósiodocosmos de impuros zeros que nãoam nãoam
  
          o nãoãoam
  
          o pluriano nãoão ao morbo amorfo innão
  
          não dêmono
  
          não deo
  
          sem som sem sexo nem órbita
  
          o hirto inósseo innão no uníssolo amódulo
  
          sem poros já sem nódulo
  
          nem eu nem cova nem fosso
  
          o macro não nem polvo
  
          o não mais nada tudo
        o não mais nada tudo
        
o puro não
sem não
PLEXÍLIO
egofluido
                       éter vago
                                               ecocida
                                                                           ergonada
no plespaço
                            prófugo
fluxo fátulo
                                      não  sopro
sem nexo anexo ao êxodo
                                            no coespaço
                                                                              afluido
nubífago
                            prépseudo
                                                     heliomito
                                                                             subzero
párialapso de exíio
                                     no não espaço
                                                                                      ido
        
GIRONDO, Oliverio.  20 poemas para ler no bonde   com  fotografias de Horacio Coppola. Tradução de Fabrício  Corsaletti & Samuel Titan Jr.  São  Paulo, SP: Editora 34, 2014.   112 p.   (Coleção Fábula)  15x22 cm.  ISBN 978-85-7356-565-1. Inclui  10 ilustrações 
  em cores de Oliverio Girondo, da 1ª. edição do livro publicada em Paris, em  1922. Tiragem: 2000 exs. Com o apoio do Programa Sur de Apoio a Traduções do  Ministério das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto da República  Argentina.  
BELA SURPRESA: uma edição  bilingue dos “20 POEMAS PARA LER NO BONDE”   de OLIVERIO GIRONDO (1891-1967), poeta vanguardista argentino, em  traduções de Fabricio Corsoletti e Samuel Titan Jr. Ele era uma figura  polêmica, frequentador dos movimentos dadaístas, cubistas  e surrealistas na Europa e simpatizante do  Ultraismo hispânico, na época das entreguerras do século 20. Jorge Luis Borges  e Oliverio Girondo eram figuras populares e opostas. Borges  -dizem — sentia ojeriza por ele e por sua  poesia. Borges era olímpico e Girondo, dinonisíaco.  “Girondo é paradoxal, instigante,  desconcertante”, escrevi sobre ele, tempos atrás.  Dois gênios em direções opostas. Girondo era  um surrealista subtropical, experimentava as novidades estilísticas (vivia em  viagens de navio entre a Argentina e a Europa, tendo passado pelo Rio de  Janeiro, tema de um de seus poemas do livro). 
Em 2004 criei esta página sobre  ele, com um texto meu de apresentação. Agora, tentando contornar a rigidez dos  “direitos autorais”, atrevo-me a publicar — valendo-me do conceito  internacional do “fair use” para efeitos culturais — dois poemas para  recomendar o livro editado —enhorabuena!!!  — pela Editora 34, disponível nas livrarias.
 
EXVOTO
            Buenos Aires, octubre, 1920
 
A las  chicas de Flores
 
Las  chicas de Flores, tienen los ojos dulces, como las almendras azu- 
caradas  de la Confitería del Molino, y usan monos de seda que les liban 
las  nalgas en un aleteo de mariposa.
 
Las  chicas de Flores, se pasean tomadas de los brazos, para transmi- 
tirse  sus estremecimientos, y si alguien las mira en las pupilas, apretan 
las  piernas, de miedo de que el sexo se les caiga en la vereda.
 
Al  atardecer, todas ellas cuelgan sus pechos sin madurar del ramaje 
de  hierro de los balcones, para que sus vestidos se empurpuren al sen- 
tirlas  desnudas, y de noche, a remolque de sus mamas—empavesadas 
como  fragatas— van a pasearse por la plaza, para que los hombres les 
eyaculen  palabras al oído, y sus pezones fosforescentes se enciendan y se 
apaguen  como luciérnagas.
 
Las  chicas de Flores, viven en la angustia de que las nalgas se les pu- 
dran,  como manzanas que se han dejado pasar, y el deseo de los hombres 
las  sofoca tanto, que a veces quisieran desembarazarse de él como de un 
corsé, ya que no tienen el coraje de cortarse el cuerpo.
 
EX-VOTO 
               Buenos Aires, outubro, 1920
 
Às moças de Flores
 
As moças de Flores têm os olhos doces como  as amêndoas açucaradas da Confitería del Molino e usam ligas de  seda que sorvem seus traseiros num esvoaçar de mariposa.
 
As moças de Flores passeiam de braços dados  para transmitir seus arrepios umas às outras e, se alguém olha para  elas direto na pupila, apertam as pernas, de medo que o sexo caia na  calçada.
 
De tarde, todas elas penduram os peitos  ainda verdes na galharia de ferro das sacadas, para que seus vestidos  fiquem roxos ao senti-las nuas, e à noite, a reboque das mamães—empavesadas  feito fragatas—, vão passear na praça, para que os homens  ejaculem palavras em seus ouvidos 
e seus mamilos fosforescentes se acendam e  apaguem como vaga-lumes.
 
As moças de Flores vivem na angústia de que  seus traseiros apodreçam feito maçãs que acabaram passando, e o  desejo dos homens sufoca-as tanto que às vezes bem gostariam de se livrar dele  como de um corselete, já que não têm coragem de cortar o corpo em pedacinhos e  atirá-lo a quem passa pela calçada.
 
 
 
         
        