Home
Sobre Antonio Miranda
Currículo Lattes
Grupo Renovación
Cuatro Tablas
Terra Brasilis
Em Destaque
Textos en Español
Xulio Formoso
Livro de Visitas
Colaboradores
Links Temáticos
Indique esta página
Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

 

UM SONETO EMBLEMÁTICO DE MAURO

MOTA



por Edson Nery da Fonseca

 

 

Extraído de:

FONSECA, Edson Nery da.  Tentativas de interpretação.  Organização de Clênio Sierra de Alcântara.  Rio de Janeiro: Cassará Editora, 2014.  136 p. 15,5X23 cm  Capa e diagramação: Giorgio Benedittini.  Imagem da capa: Cachoeira da Floresta (1757) de Frans Post.  ISBN 978-85-64892-22-4   Inclui seis textos sobre poesia brasileira: Mauro Mota, Lêdo Ivo, poesia condoreira (Castro Alves), Murilo Mendes.  “ Edson Nery da Fonseca “  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Com raízes nos hieróglifos do antigo Egito, a literatura emblemática foi cultivada na Idade Média e chegou ao Renascimento, sendo sua consagração atribuída ao humanista milanês Andrea Alciati (1492-1550) com a obra Emblematum Libellus, impressa em 1531 e muito divulgada por toda a Europa, inclusive em Portugal, onde foi editada pelo grande etnólogo José Leite de VASCONCELOS (1).

 

A característica da literatura emblemática é a utilização de desenhos de animais, plantas, pedras e outros elementos da natureza como objetivo moralizante, expresso em versos. Em sua conhecida obra Análise e interpretação da obra literária, o crítico Wolfgang KAYSER (2) trata da matéria, citando o poema "O ciúme", de Bocage, no qual a palavra palmeira é usada como "símbolo da constância e da fidelidade".

 

O soneto de Mauro MOTA (3), que ouso classificar como emblemático, chama-se "O cão", aparece no livro Os epitáfios, publicado em 1959, e foi incluído em todos os volumes posteriores de suas poesias completas ou antologiadas. No artigo em que apreciou Os epitáfios, o crítico Wilson MARTINS (4) reproduziu o soneto "O cão" como exemplo de "força verbal" e "sentido do ritmo" identificadores de um "pensamento poético". Fala ainda Wilson Martins nas "evocações cabalísticas" e na "proporção inquietante de mistério" que caracterizam os poemas de Mauro Mota e os inserem "nessa suprarrealidade, nesse mundo a várias dimensões" por ele — crítico de notável percepção — considerado como "específico da grande poesia".

 

Também Fausto CUNHA (5) — outro crítico altamente perceptivo — destacou "O cão" como "um dos mais impressionantes" de Mauro Mota, salientando que o adjetivo impressionante é o que melhor define seu "realismo fantástico", sua "visão surrealista", seu "humor negro". Lembre-se que já em 1952, prefaciando a primeira edição de Elegias, Álvaro LINS (7) caracterizava a poesia de Mauro Mota como "uma espécie de realismo mágico, uma extraordinária capacidade para transfigurar o imediato e o cotidiano em simbologia poética". Em 1952, isto é, numa época em que alguns observadores superficiais consideravam Mauro Mota como apenas sentimental e descritivo: o sentimental das "Dez elegias" e o descritivo de "Cidade flutuante".

 

Para melhor entendimento do soneto "O cão", devemos remontar aos bestiários medievais, definidos por Massaud MOISÉS (7) como "livros em prosa ou verso, muitas vezes com ilustrações, que tratavam de animais, verdadeiros ou fantásticos, considerados simbolicamente portadores de qualidades sobrenaturais". Vários desses animais aparecem na obra poética de Mauro Mota, principalmente em Os epitáfios, onde, além de "O cão", encontramos "O boi de barro", "A potranca", "Pássaro do museu do Ginásio Pernambucano" e "As andorinhas", devendo-se recordar que o livro seguinte a Os epitáfios se intitula O galo e o catavento (MOTA (8)).

 

Recorde-se ainda, de Mauro Mota, sua obra em prosa Os bichos na fala da gente, na qual encontramos duas referências mitológicas a respeito do cão. Ele assinala que Argos é nome tanto do cão de Ulisses na Odisseia de Homero — o que morreu de emoção, ao rever seu dono, depois de vinte anos — como o filho de Agenor, cujos cem olhos foram arrancados por Juno e transportados para a plumagem do pavão (MOTA (9)). Aqui já entramos na área das metamorfoses, que segundo meu amigo Joaquim Francisco Coelho — professor da Universidade de Harvard com quem conversei recentemente por telefone sobre o assunto — talvez sejam uma das chaves do soneto "O cão". À luz da metamorfose — acrescente-se a Joaquim Francisco Coelho — Mauro Mota poderia ter se inspirado no Veltro de Dante:

um cão dotado de grande força que surge no primeiro canto do Inferno com a missão de combater a avareza, representada por uma loba. Para alguns exegetas da Divina comédia, o próprio Veltro seria um símbolo de alguém destinado a salvar a dilacerada Itália de DANTE (10). Seguindo esse filão, Mauro Mota poderia ter pensado em seu cão como símbolo do combate notívago da consciência humana, que só encontra redenção quando "raia, sanguínea e fresca, a madrugada", para citar o lindo poema de Raimundo Correia. Sugestão que me ocorre ao pensar no soneto de outro grande poeta. Augusto dos Anjos. Com a diferença de que, em "O morcego", o próprio autor fornece a chave da metáfora, ao dizer, no último terceto, depois de contar sua luta para matar aquele produto de "tão feio parto":

 

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

imperceptivelmente em nosso quarto!

 

No soneto de Mauro Mota, nota-se logo a polivalência da palavra cão. Ele começa como quem vai simplesmente descrever o animal, referindo sua cor negra. Mas, logo se instaura, através do advérbio dubitativo, assombradora hipótese de ser o Cão com maiúsculo, isto é, o demónio. Luís da Câmara CASCUDO (11) informa não haver encontrado cão na sinonímia portuguesa dedicada ao diabo, em contraste com o que ocorre "no seio do povo brasileiro [onde] se diz sempre como sinónimo demoníaco Satanás, Diabo, Lúcifer, Belzebu". A semântica da palavra cão se amplia na segunda estrofe com a referência astronómica. Trata-se também da conhecida constelação do hemisfério austral, indicada pela recorrência sonora conhecida como eco, pelas terminações em "ao" dentro do mesmo verso: "Cão da Constelação do Grande Cão". Um verso de "notas fortes", como assinalou Fausto CUNHA (12).

 

A metáfora atinge verbos e substantivos, de modo que o silêncio da noite não é interrompido ou perturbado, mas estraçalhado; o medo e a treva não são sentidos ou vistos, mas comidos; a "espada ígnea do olhar" (que é uma bela metáfora) não ilumina ou clareia a noite, mas abre um canal no escuro; o animal está faminto não de alimentos, mas de tempo e de cor; os pontos cardeais são lambidos; o levante (no sentido de nascente) é mordido.

 

Volto a citar Augusto dos Anjos para recordar o que talvez não passe de simples coincidência. No soneto "Versos a um cão" o poeta paraibano fala de "latidos ancestrais" e no soneto de Mauro Mota encontramos "o latido ancestral". Finalmente, para acentuar o caráter fantasmagórico do soneto de Mauro Mota, recorde-se, a propósito da loucura e dos uivos do cão de seu soneto, este esclarecimento de Luís da Câmara CASCUDO (13): "O cão que uiva é porque está vendo alma do outro mundo. Diz-se o esconjuro. “Todo agouro para o teu couro”.

 

Identicamente — continua Cascudo — em Roma, acreditava-se no cão ter poder de enxergar a sombra dos mortos, os espectros que acompanhavam Hécate nas encruzilhadas". Contarei, para concluir, um caso ainda mais impressionante por ser real: o do cão de meu saudoso amigo José Augusto Guerra, que uivou misteriosamente nos dois dias que antecederam a morte do dono, por afogamento, na praia de Boa Viagem.

 

 

Referências bibliográficas

 

1.  VASCONCELOS, José Leite de. "Emblemas" de Alciati explicados em portuguez... Porto; Renascença Portuguesa, 1917.    

2.  KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. 6a ed. port. totalmente rev. pela 16a alemã por Paulo Quintela. Coimbra: A. Amado, 1976, p.75.

3.  MOTA, Mauro. Os epitáfios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959, p. 11.

____. Canto ao meio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 114.

____. Antologia poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1968, p. 64.

____. Itinerário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 42-43. Itinerário e

Pernambucânia; ou. Cantos da comarca e da memória. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p. 44-45.

4.  MARTINS, Wilson. "Auguri!" O Estado de S. Paulo, 9 de janeiro de 1960, suplemento literário.

5.  CUNHA, Fausto. "A poesia de Mauro Mota". In: Mota, Mauro. Itinerário (obra upracitada), ed. 1975, p. xxiii.

6.   LINS, Álvaro. Prefácio. In: Mota, Mauro. Elegias. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1952, p. 9.

7.  MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 61.

8.  MOTA, Mauro. O galo e o catavento. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1962.

9.  ____. Os bichos na fala da gente. 2a ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978,p. 35.

10. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Integralmente traduzida, anotada e comentada por Crisüano Martins. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Itatiaia, 1976, p. 89, nota 102.

11. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 4a ed. rev. e aum. São Paulo: Melhoramentos, 1979, p. 190.

12. CUNHA, Fausto. Prefácio citado (ver nota 5) p. xxiv.

13. CASCUDO, Luís da Câmara. Obra citada, p. 191.

 

 

Página publicada em janeiro de 2015

 

 

 


 

 

 
 
 
Home Poetas de A a Z Indique este site Sobre A. Miranda Contato
counter create hit
Envie mensagem a webmaster@antoniomiranda.com.br sobre este site da Web.
Copyright © 2004 Antonio Miranda
 
Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Home Contato Página de música Click aqui para pesquisar