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                          UM SONETO DE  RAIMUNDO CORREIA
 por Alexei Bueno    Extraído de   POESIA SEMPRE.  Ano 13. Número 20. Março  2005. Revista trimestral de poesia.   Editor Luciano Trigo.   Rio de  Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2005.  Ilus.   Ex. bibl. Antonio Miranda     Raimundo  Correia nasceu dentro de um navio, na costa do Maranhão, a 13 de maio de 1859.  Pode-se assim dizer, para os apreciadores de comparações esdrúxulas, que as  mesmas águas que cinco anos depois engoliram um dos nossos maiores românticos,  Gonçalves Dias, já haviam dado à luz, em compensação prévia, um dos nossos  maiores parnasianos, o mesmo que morreria em Paris, em 13 de setembro de 1911,  numa viagem inútil em busca da saúde, como tantas fez o autor de Os Timbiras.  Da nossa célebre Trindade Parnasiana, foi sem  dúvida Raimundo Correia o maior artista do verso. Sem a regularidade e o senso  comum de Bilac, sem a ortodoxia de escola de Alberto de Oliveira, muito mais  filósofo que ambos, fundamentalmente um pessimista, escreveu alguns dos mais  extraordinários sonetos da lírica brasileira, sendo popularizado, no entanto,  por uma paráfrase de Metastasio, "Mal secreto", que de maneira alguma  faz jus ao seu talento, e pelo realmente belo "As pombas", dessa vez  paráfrase de um trecho em prosa de Théophile Gautier em Mademoiselle de Maupin, soneto que  influenciou muito diretamente um outro de António Nobre. 0 soneto manuscrito que aqui vemos, das coleções da Biblioteca Nacional, veio  a ser publicado em Aleluias, de 1891,  talvez a sua recolha mais importante, e no livro traz a seguinte exata redação:  
                       
                    
                      Poema da noite   A Narcisa Amália   Teus cantos o esplendor e a formosura Da noite exalçam... Lânguido arrepio
 Percorre as folhas... Que fragrância  pura
 Respira em torno o laranjal sombrio!
   Doce palpita a brisa na espessura Das sebes vivas... Suspiroso, o rio
 A ribanceira em flor beija, e murmura
 A espreguiçar-se no seu leito frio...
   É um poema de amor que eu ouço; há tantas Rosas a abrir no campo: e, cento e cento, Rompem astros no páramo infinito...
   Canta! Eu releio o poema que tu cantas. Nessa página azul que o firmamento
 Desdobra, todo em letras de ouro escrito...
       Narcísia mália: ídolo do Romantismo e fonte de  inspiração poética.      Como se  nota, só existem pequenas alterações na pontuação, sendo o dado mais importante  acrescentado pela versão impressa a dedicatória a Narcisa Amália.   Narcisa  Amália, nascida cm 1852 cm São João da Barra, foi um ídolo feminino do final do  nosso Romantismo após publicar, em 1872, o livro Nebulosas, que alcançou  grande repercussão. De feição condoreira, com visível influência de Castro  Alves, sua poesia tinha uma força viril que encantou a todos os poetas da época  — aliada à real beleza da moça — tendo-se chegado inclusive a duvidar que fosse  ela a autora dos versos, atribuindo-os a seu pai, em insustentável atitude machista.  Narcisa Amália, que vivia desde criança em Resende, casou-se aos treze anos com  um artista itinerante, separan-do-se logo depois. Pouco mais tarde casou-se com  um padeiro. Na padaria familiar ou em sua casa foi procurada por Fagundes  Varela, pelo amigo deste Otaviano Hudson — ambos aparentemente apaixonados pela  poetisa-padeira —, como mais tarde por Luís Murat e pelo nosso Raimundo  Correia. A visita mais ilustre que recebeu, no entanto, foi a do próprio I).  Pedro II. que. estando em Resende, fez questão de conhecer a auto¬ra célebre.  Literariamente esquecida após o fim do Romantismo, Narcisa Amália morreu no Rio  de Janeiro em 1924, cegac paralítica, após décadas de dedicação ao ensino, ao  jornalismo e à causa da eman-cipação da mulher.   "Poema  da Noite", portanto, é um re-gistro do encontro entre o futuro grande  parnasiano e o nome feminino mais notável do nosso Romantismo moribundo. Nunca  saberemos se a admiração de Raimundo Correia era puramente poética, ou se  também se rendera aos encantos de Narcisa, verdadeiramente uma mulher de grande  beleza, ao menos pelo retrato seu que ilustra a edição das Nebulosas. Poeta de  grande senso sonoro e cromático — chegaria a escrever poemas claramente  simbolistas, como o célebre "Plenilúnio" — podemos perceber algo  disso em "Poema da noite". Na base do manuscrito, algum possuidor seu  escreveu: "Basta este soneto para imortalizar o nome de Raimundo  Correia", uma dessas declarações espontâneas de leitores que tantas vezes  encontramos em livros e manuscritos antigos, e que fazem parte de seu  permanente encanto.   
 NARCISIA AMALIA
     
   Poema manuscrito de Raimundo  Correia, em que o parnasiano evidencia sua admiração por Narcisa Amália. 
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