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TRADUZINDO UM SONETO ILUSTRE

por
Anderson Braga Horta

 

 

             Em geral, não lemos com toda a atenção.  Ao fim de algumas páginas, se não de umas poucas linhas, o olhar automatiza-se na decifração dos caracteres, a mente deixa-se levar pelos caminhos da imaginação, à do autor não raro se somando a de quem lê, ou treslê, e o ouvido interior vai-se embalando na música das palavras, a ponto de se tocarem, de se imbricarem, no simples ato de leitura, dois universos irmãos.  O que mais verdade é se se lida com poesia.  Mas o tradutor, especialmente o de poesia, não se pode permitir tais devaneios, — não no momento de traduzir.  É que, mesmo na translação entre idiomas tão próximos como o espanhol e o português, não é toda hora que se tem a felicidade de poder verter palavra por palavra; a regra é ter de captar o sentido, as imagens, o ritmo, a música do original e tentar reproduzi-los, recriá-los, caso necessário, na língua meta.  Assim, o tradutor tem de esmiuçar o texto, analisá-lo, interpretá-lo, até bem o compreender (ou julgar que...), antes de partir para a escrita final.  E isso, em certos casos, pode-se revelar tarefa bem árdua.

Um dos poemas espanhóis que primeiro me despertaram o interesse de tradutor amador —sem embargo de já outros o terem traduzido, e alguns, provavelmente, melhor do que eu o poderia— foi um ultrafamoso soneto de Quevedo:  “Amor Constante más allá de la Muerte”.  Cedo percebi que entre a mera fruição dos versos e a tarefa que me propunha havia um fosso.

Já não sei em que publicação relera o soneto; sei que, tendo acedido ao desejo de transpô-lo ao português, decidi consultar fonte mais fidedigna; assim, procurei pela obra de D. Francisco de Quevedo na Biblioteca da Câmara dos Deputados, onde trabalhava, encontrando um volume intitulado El Parnaso Español y Musas Castellanas, edição datada de Barcelona, 1866, que se declara “sacada de la antigua Edicion impresa á últimos del siglo XVI”.1  Deparei-me com o seguinte texto, que transcrevo sem tirar nem pôr:

 

Amor constante mas allá de la muerte.

 

XXXI.

 

 

Sombra que me llevare el blanco día;

Y podrá desatar esta alma mía

Ora a su afán ansioso lisonjera:

    Mas no de esotra parte en la ribera

Dejará la memoria en donde ardía;

Nadar sabe mi llama la agua fría,

Y perder el respeto a ley severa.

    Alma á quien todo un Dios prisión ha sido,

Venas, que humor a tanto fuego han dado,

Médulas, que han gloriosamente ardido:

    Su cuerpo dejarán, no su cuidado;

Serán ceniza, mas tendrá sentido;

Polvo serán, mas polvo enamorado.”2

 

De pronto, uma discrepância relativamente a todas as mais edições a que tenho tido acesso:3  a palavra que inicia o quarto verso está grafada “Ora”, e não “Hora”.  Não se argua eventual indiferenciação: o texto do volume abriga, distintamente, um e outro vocábulo.  “Hora”, como substantivo, o percorre, de fio a pavio, sempre com o h inicial.4  O caso mais significativo é o dos “Tercetos” sob a epígrafe “Sátira a una dama”, em que os dois vocábulos se confrontam.  No quinto terceto (página 559) se lê:  “La causa yo la sufro, e tú la sabes, / Aunque en callarla pienso ser eterno, / Ora me vituperes ó me alabes.”  Já na penúltima estrofe (página 566):  “Buscaré tu amistad en todas horas”.

Voltemos ao soneto.  Uma e outra versão permitem leitura coerente.  Com “ora”, advérbio,5 o sujeito de “podrá desatar” será “la postrera sombra ....”; objeto direto, “esta alma mia”.  Desse modo, a “postrera sombra” seria, “ora”, isto é, neste momento, “lisonjera” (= agradável) ao “afan ansioso” de “esta alma mia”.

Com “hora”, seria este substantivo o sujeito.6

              Em minha tentativa de transposição, dou preferência à fonte mais antiga.  Não por julgá-la isenta de erros, que certamente os tem.  (Por exemplo: na página 201, no soneto XLIV, quase vizinho do que nos ocupa, o primeiro quarteto se encerra com o verso “Llama por las médulas estendidas”, sendo o proparoxítono incompatível com o ritmo.7  Outro exemplo: na página 509, soneto VII de “Poesias Amorosas”, ao verso primeiro —“A fugitivas sombras doy brazos”— falta uma sílaba: provavelmente o pronome “les” acoplado a “doy”, se bem que estranhe a repetição de “brazos” no verso quarto.)  Assim procedo por ser essa a fonte mais próxima do poeta (salvo documentação de que eu não tenha conhecimento) e, no particular, não aparentar engano.

              Há mais discordâncias entre as edições.  Algumas registram “dejará”, em vez de “dejarán”, no verso 12.  Com isso, o sujeito deixa de ser composto —“alma”, “venas” e “médulas”— para ser simplesmente “alma”.  “Venas” e “médulas” entender-se-iam como sujeito de “serán”.8

              Há-as também que põem “tendrán” por “tendrá”, no penúltimo verso.  Afigura-se-me bem mais defensável o singular, subentendendo-se um elíptico “eso” como sujeito (não creio que pudesse ser “alma”).

              Diferenças menores são as de pontuação, nos versos 2 (vírgula, em vez de ponto-e-vírgula, em “dia”), 4 (ponto-e-vírgula pelos dois-pontos), 5 (“de esotra parte” entre vírgulas; vírgula no fim), 6 (vírgula em “memoria”; dois-pontos, e não ponto-e-vírgula, no fim), 10 (omissão da vírgula em “venas”), 11 (omissão da vírgula em “médulas”; ponto-e-vírgula em “ardido”).

Assinale-se, afinal, que “Dios”, no verso nono, está, na edição trazida à baila, com inicial maiúscula.

Em meu trabalho, apenas acato a modernização de abolir a obrigatoriedade da letra capital no começo de cada verso, além de adotar a separação estrófica.

Assim ficou:9

 

     AMOR CONSTANTE PARA ALÉM DA MORTE

 

 

Cerrar meus olhos pode a derradeira

sombra que me levar o branco dia,

e desatar esta alma poderia,

ora a sua ansiedade lisonjeira;

 

mas não dessoutra parte na ribeira

a memória deixar, na qual ardia;

nadar sabe esta chama na água fria,

à lei que rege as coisas sobranceira.

 

Alma a quem todo um Deus prisão tem sido,

veias que humor a tanto fogo hão dado,

medulas que hão gloriosamente ardido:

 

seu corpo hão de deixar, não seu cuidado;

e serão cinza, mas terá sentido;

e serão pó, mas pó enamorado.

 

 

              Pode-se-lhe objetar (entre tantas coisas) que o fecho do segundo quarteto é passível de tradução literal (quase transcrição letra por letra: “E perder o respeito a lei severa”). Retrucaria que a condescendência para uma rima toante, no contexto, seria aceitar uma imperfeição, ainda que passável, na reconfiguração lingüística de obra tão perfeita.

              A mudança da regência do verbo nadar, de transitivo direto, que me parece mais forte, para transitivo indireto, acarretou alguma perda.  Minha primeira versão procurou obviá-la com o recurso a flâmula, vocábulo que, proparoxítono, compensava a perda de uma sílaba métrica, decorrente da substituição do el espanhol pelo a português:  “nadar sabe esta flâmula a água fria”.  Grande tradutor de Quevedo, o poeta Fernando Mendes Vianna, em conversa amigável, criticou veementemente a solução, e um de seus argumentos era que o termo, entre nós, costuma ser usado antes com o sentido de bandeirola, bandeira.  De início, entretanto, finquei pé no meu laborioso achado.

              Para o tradutor que teima em conformar seu trabalho a extremos de rigor —o que é sempre desejável, mas nem sempre possível— haveria um reparo a prevenir: o anacronismo lingüístico; mas, informa Antônio Geraldo da Cunha,10 minimizando essa possibilidade, flâmula entrou para o acervo da língua no século XVII.  Pareceu-me ter encontrado a solução ideal.  Soava bem, ainda por cima.  Só que a forma diminutiva, convenci-me por último, não condiz com aquele arroubo flamejante...  Hélas!

Finalmente, aos que me indagassem por que tanta celeuma em torno de miudezas, diria simplesmente:  É que miudezas determinam, às vezes, a fortuna do poema; e não convém facilitar com este, que é um dos mais belos sonetos de todos os tempos, digno de ombrear com um “Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono” (Petrarca), um “Mientras por competir con tu cabello” (Gôngora), um “Sete anos de pastor Jacó servia” (cito de propósito, de Camões, um que nosso autor traduziu — páginas 518-519 da edição em foco), para lembrar apenas alguns de uma ilustre linhagem.

 

NOTAS 

  1. No que, decerto, há equívoco, pois Quevedo nasceu justamente “á últimos del siglo XVI”, em 1580, e morreu em 1645, sabendo-se que a publicação de sua obra em livro se deu postumamente.  Confusão entre a expressão “os Seiscentos” e “século XVI”?
  2. Pág. 194.  O soneto integra a “Musa IV”, no título “Carta Sola á Lisi, y la Amorosa Pasion de su Amante”.  Transcrevo-o, insisto, respeitando rigorosamente termos, disposição e grafia.
  3. Não as arrolarei, visto que não pude levar muito longe a pesquisa.  Apenas menciono, por sua reputação, a de Manuel Becua (Poemas Escogidos, Clásicos Castalia, Madri, 1989), que diverge da de 1866 ao lançar “hora”, no quarto verso, e “dejará”, no décimo segundo, e ainda em nove itens de pontuação.
  4. Cito, quase à vol d’oiseau, as páginas 49, 76 e 88 (“Musa IV”, sonetos XXIII, LXXXV e CIX), 100-101 (terceto 14 da “Epístola Satírica”), 114-115 (“Musa III”, sonetos XVIII e XXI), 132 e 172 (“Musa IV”, soneto VII e “Romance II”, penúltima quadra), 182 e 204 (“Carta Sola á Lisi”, soneto V e “Idilio IV”, ainda em “Musa IV”), 265 e 269 (“Musa V”, “Bailes”, IV, verso 11, e V, várias vezes), 288 e 367 (“Musa VI”, soneto XXIII e “Romance XXVI”, penúltimo verso), 489 (“Musa VII”, “Cancion”), 604-652 (“Musa VIII”, “Silvas”, II, v. 9, III, quase in fine, IV, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XVII e XVIII) e 733 (“Musa IX”, “Cantar de Cantares de Salomon”).
  5. É como se deve ler, embora o dicionário da Real Academia (21.ª ed., Madri, 1992) não contemple ora como advérbio, apenas como conjunção (pode ser este o caso no exemplo da pág. 559).
  6. Amado Alonso, em Materia y Forma en Poesía (Gredos, Madri, 1969, pág. 14), numa transcrição sem capitais obrigatórias no início de verso, registra “Horas”, com maiúscula, seguido de vírgula; as mitológicas Horas, todavia, não aparentam relação com o tema do soneto.  Dâmaso Alonso, em Poesia Espanhola (trad. de Darcy Damasceno, Instituto Nacional do Livro, 1960, págs. 395-396), consigna “horas”, sem vírgula, e, ao contrário de Amado, flexiona no plural os verbos dejar e tener do segundo terceto.
  7. Por intermédio do lingüista espanhol José Antonio Pérez Gutiérrez, fico sabendo que a ortografia usada na edição não é a original do poeta.
  8. É a leitura, aliás, de Amado Alonso (op. cit., págs. 15-16).

Rechaço  a  possibilidade,  que  a  mim  mesmo  aventara,  de  o  primeiro  terceto —“alma”, “venas” e “médulas”, com os respectivos atributos— ser tomado no todo, e não parte por parte, funcionando como sujeito único, porque tal não apresenta coerência com o plural de “serán ceniza” e “polvo serán”.

    • A tradução foi publicada na revista Cerrados, ano 3, n.° 3, 1994, e na Revista de Poesia e Crítica, n.° 20, outubro de 1996 (ambas de Brasília).
    • Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua  Portuguesa, Rio, 1982.

     

     

     

     


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