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O SONETO INOVADOR DE JORGE DE LIMA

 

       Por FÁBIO LUCAS*

Texto extraído de

 

POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia – Ano 2  Número 3 – Rio de Janeiro Fevereiro 1994 - Fundação Biblioteca Nacional. ISSN 0104-0626  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

  1. O SONETO

 

Atribui-se a Fra Guittone cFArezzo (1230-1294) a fixação da forma definitiva do soneto. "Ao plantar essa árvore encantada" - diz Vasco de Castro Lima - "antecipou, também, que o soneto se comporia melhor com versos decassílabos de rimas graves." (O mundo maravilhoso do soneto, São Paulo, Freitas Bastos, 1987, p. 83).

Os franceses, dada a natureza de sua língua, não se amoldaram estritamente a tal orientação. Manejando um idioma rico em vocábulos oxítonos, preferiram criar os versos dodecassílabos (alexandrinos) e o soneto de versos de cesuras obrigatórias, divididos em dois hemistíquios de seis sílabas.

A base da invenção foi o strambotto, versos populares cantados em bailados de camponeses, principalmente na Sicília e na Toscana, compostos de duas quadras isomórficas, de rima ABABABAB.

Sob essa estrutura, acrescentaram-se dois tercetos de tradição erudita, de rima esquematizada em CDC-DCD.

Ao longo do tempo, cristalizou-se a noção de que o soneto deveria abrir-se com uma chave de prata no primeiro verso e fechar-se com uma chave de ouro no último (décimo quarto verso).

Do ponto de vista conceituai, os quartetos serviriam para apresentar as premissas do poema (premissa maior e premissa menor), enquanto aos tercetos se reservava a conclusão. A palavra sonetto, em italiano, teve a concepção primitiva de "pequeno som", "breve melodia". Foi criada na Sicília, no séc. XIII, por poetas influenciados pelos trovadores da Provença (provençais). Essencialmente se referia a uma peça lírica.

Usada por Guido Cavalcanti (1255-1300) e Dante Alighieri (1265-1321), participantes da Escola do "Dolce Stil Nuovo", a composição teve em Petrarca o seu grande fixador, que concebeu o chamado "soneto petrarquiano" de estrutura rímica ABBA ABBA CDC DCD.

A partir daí, é longa e rica a sua história. Vários grupos literários aceitaram o desafio de conter a expressão lírica no quadro dos quatorze versos decassílabos, endecassílabos ou dodecassílabos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Peça concisa e harmoniosa, requer do poeta, além de inspirada expressão, o talento de conter seu enunciado nas grades da forma preestabelecida, sem que o leitor venha a sentir a presença do artifício e das regras.

Na história da literatura brasileira, dois períodos de liberação formal, o Romantismo e o Modernismo, não tiveram o soneto como veículo principal de seus valores. Bem ao contrário dos períodos regidos por princípios classicizantes - o Arcadismo, o Parnasianismo e a Geração de 45, que fizeram do rigor formal e da imitação dos Clássicos a regra de ouro da elaboração poética. Tais grupos literários tornaram o soneto um símbolo da verdadeira poesia.

 

2 JORGE DE LIMA

 

A personagem de Jorge de Lima (1893-1953), dentro do modernismo brasileiro, é bastante singular.

Iniciou prematuramente a sua carreira de poeta com a publicação de uma plaquete intitulada XIV Alexandrinos, de 1914. Da coleção constava o soneto "O acendedor de lampiões", publicado aos 17 anos do autor.

A popularidade dessa composição foi notável. O poeta tornou-se nacionalmente conhecido e "O acendedor de lampiões" chegou a ser atribuído a Hermes Fontes, num equívoco que o próprio autor sergipano fez questão de desfazer.

A grande obra de Jorge de Lima, portanto, iniciou-se com a publicação de sonetos. Por volta de 1925, o escritor aderiu à agitação modernista, à abolição das rimas e dos acentos rítmicos obrigatórios. Ao Modernismo, no início, abominava o soneto. Mas o poeta, no entanto, regressou à forma antiga no final de sua carreira, com a publicação do Livro dos sonetos, em 1949, e da Invenção de Orfeu, em 1953, poema-livro de admirável complexidade, dentro do qual introduziu incontáveis e inesquecíveis sonetos (setenta ao todo).

Os XIV Alexandrinos, poemas da juventude, observam estreita influência da oficina parnasiana, embora, no espírito, deixassem transparecer certo lado romântico do poeta iniciante.

Este, na maturidade, volveu à composição em que se havia notabilizado, mas com a força de renovação e tal ímpeto, adquirido na experiência modernista, que acabou cunhando, com a sua marca autoral, um protótipo da espécie.

Foi tão revolucionário o surgimento do Livro dos sonetos e da Invenção de Orfeu que Carlos Drummond de Andrade acabou por celebrar num soneto, denominando Conhecimento de Jorge de Lima, incluído no volume Fazendeiro do ar, de 1954:

 

Era a negra Fulo que nos chamava
de seu negro vergel. E eram trombetas,
salmos, carros de fogo, esses murmúrios
de Deus a seus eleitos, eram puras

canções de lavadeira ao pé da fonte,
era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.

                   Era um fluir de essências e eram formas
                   além da cor terrestre e em volta ao homem,
                   era a invenção do amor no tempo atómico,

                   o consultório mítico e lunar
                  (poesia antes da luz e depois dela),
                   era Jorge de Lima e eram seus anjos.

Para se ter a atmosfera em que nasceu e produziu o sonetista Jorge de Lima, seja-nos permitido reproduzir "O acendedor de lampiões", em que se nota a compostura do terno poeta parnasiano, seus cuidadosos hemistíquios, suas rimas fluentes e oportunas, seus conceitos de elevada inspiração, baseados numa visão humanística da vida:

 

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
A medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

 

Podemos, assim, alcançar as duas pontas do poeta: os primeiros e os últimos passos ao redor da famosa composição métrica, o soneto.

 

3 O LIVRO DOS SONETOS

 

Conta-se que Jorge de Lima escreveu os poemas do Livro dos sonetos sob o efeito de visões e alucinações oníricas, em estado hipnagógico, no período de dez dias. Acontecia levantar-se de madrugada e compor vários sonetos de uma só vez. Era um período de grande angústia para o poeta, quando começou a sonhar acordado.

Nos sonhos, tornaram-se recorrentes alguns sinais de sua infância. Por exemplo: o galo da Igreja de São Rosário de Maceió, um galo de orientação dos ventos; a draga existente na praia de Pajuçara e que se apresentava ao menino Jorge como algo fantástico. Ao redor dela, brincavam as crianças. Um dia, uma garota chamada Elisa, afoita, entrou na draga e só pôde sair dali horas depois. Com oito anos, o poeta sofreu o pavor da cena; outro exemplo foi a pretinha Celidônia, muito bonita, que morreu afogada no rio Mandau. Jorge de Lima nunca mais se esqueceu daquele acontecimento.

Nos dias de crise vividas por ele, em plena maturidade, os fatos da infância o assediaram e viraram símbolos, matéria literária, misturados a outras experiências da vida. Somente após ter transposto tudo para os sonetos é que a crise passou.

Daí, o denso aspecto onírico que adotam os poemas, que ora se assemelham a peças surrealistas, ora parecem relatos de estados alucinatórios.

Convém relembrar que Jorge de Lima, na década de 1930, esteve sob constante sedução da corrente surrealista. Chegou a dar testemunho disto no pequeno romance O anjo (1934) e na convivência com Murilo Mendes, com quem escreveu em parceria Tempo e eternidade (1935). Foi o tempo da crise religiosa, tendo ele na ocasião se convertido ao catolicismo. Críticos houve que apontaram a influência de Jean Cocteau à sua obra daquela fase.

Da temática nordestina da primeira fase salta para a concepção espiritualista, mais introspectiva na segunda. O soneto-símbolo da instância onírica de Jorge de Lima, quando os signos da experiência poética passada se mesclam e se sublimam numa linguagem espessamente esotérica, poderia ser o seguinte:

 

O rochedo do sono é tão fechado,
tão pedra de Esaú, tão existido,
que ele cumpre na vida um grande fado,
— o de acolher um Édipo impunido.

Sempre em seu bojo há um anjo adormecido
e um menino num poço debruçado;
o cão noturno late, e o seu latido
é o grito do menino já afogado.

À noite, barha-azul dormindo joga
sete princesas pálidas no poço,
e o poço voracíssimo as engole.

E engole indiferente quem se afoga,
— sete pedras atadas ao pescoço
que pedra e amor é o mesmo no seu gole.

 

Nota-se aí o cruzamento de duas sequências de remotas lembranças: a que encadeia o surto de reminiscências vivenciais e a que externa resíduos das leituras que constituíram as primeiras experimentações literárias do leitor/escritor.

O "Édipo impunido" haverá de renascer em muitas circunstâncias. Se se desejar amostra da sensualidade primitiva do poeta, em que a "bela adormecida" (a pretinha Celidônia?) se confunde com as imagens edipianas depositadas no inconsciente, eis o soneto que mal esconde as "dormidas brasas" da paixão rebelde:

 

Dormes. Surgem de ti coisas pressagas.
Ó bela adormecida, não tens sexo,
como as algas marítimas que as vagas
jogam na praia em renovado amplexo.

O vendaval é o mesmo em que te apagas
 num torvelinho de ímpeto convexo;
dormindo, rodopias, e te alagas
num turbilhão de diálogos sem nexo.

Sonâmbula parada, és a andarilha,
ilhada entre lençóis. Virgem tens prole,
pois és ao mesmo tempo avó, mãe, filha.

E que o sono multíparo te viole,
anjo desnudo, salamandra de asas
ressuscitada de dormidas brasas.

 

Por enquanto, os sonetos, decassílabos, se comportam formalmente dentro das convenções. Mas, quando o poeta tenta recuperar a "defunda infanta" de sua memória, não resiste e traça um soneto inconsútil, elaborado como um só bloco, uma composição inteiriça, qual a indicar o fluxo ininterrupto da emoção. Aí as grades de quartetos e tercetos se abrem, para abrigar o conteúdo de uma comoção compacta:

 

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos.
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

 

Abandonado o estudo das aliterações e da nasalização que unem "chama" a "defunta", "infanta", "ungida" e "santa", estranha "infanta" rememorada. Tal imagem se cruzará com outras, carregadas de sexualidade, em que se mesclam, em faixas cambiantes, tendências obscuras ao incesto ("avó, mãe, filha"), à necrofilia e também à homossexualidade.

Outra característica do Livro dos sonetos vem a ser a recorrência temática, a que nem sempre se segue uma convergência formal. Jorge de Lima altera por vezes o ritmo e o esquema acústico do poema, a fim de obter um jogo mais rico de sentimentos ou expressão mais fervilhada de nuances, de sutilezas do campo indizível que a poesia procura frequentar.

Tal é o caso da defunta, que ressurge no soneto seguinte:

 

Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insónia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.

 

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

 

 

Observe-se: cada estrofe deste soneto mereceu um ponto final. No primeiro quarteto, domina o tempo passado: "era a defunta"; no segundo rege o tempo presente: "Hoje é rosa distante". No primeiro terceto "a insónia" faz conjugar os três tempos: "ontem", "hoje" e "amanhã". Por fim, o terceto final reconcilia "os antípodas" "na noite" da "eterna infanta para sempre amada". Aquela "rosa" em que hoje se transmuda a infanta ressurgirá em vários poemas de cunho erótico/confessional. Representará o sexo feminino em múltiplas aparições.

Lê-se o Livro dos sonetos como um palimpsexto, em que se gravam simultaneamente emoções e sentimentos de fases diferentes do poeta. Daí o clima alucinatório em que é vazado, no interior do qual bóiam os signos de eleição. A sonoridade dos versos realiza o jogo de claro/escuro, de noite/dia e de vida/morte. É frequente que o leitor esbarre em trechos que acenam para a loucura. Deste modo, o terceto final de um dos sonetos reza:

O oceano apodreceu no próprio leito,
e uma lava comum, estranha lava
de loucura inundou bestas e génios.

 

Um pouco depois, vem outro terceto conclusivo nestes termos:

 

e depois da janela esse esperado
postigo, esse último portão que eu abro
para a fuga completa da razão.

 

Todo esse apelo aos estados de demência e loucura, implicam a insistência no campo da indeterminação da alma, no lusco-fusco, na irracionalidade em que afloram as profundezas recalcadas.

Dois sonetos há no livro que tentam recuperar o mesmo clima das leituras de contos de fadas. E a chave de ouro é a mesma, encerrada num refrão exclamativo:

Ó meninos, ó noites, ó sobrados/

Mais dramáticos são os poemas que lidam com o tema do amor, criando uma espécie de musa inexorável, a mexer com o lado mais ardente da sensualidade, ou com as aproximações mais terríficas ao tema da morte. Por vezes, o clima de alucinação se soma a esse curso inconsciente, como se nota no soneto que se inicia por esta cláusula:

 

E eis que surgem dos flancos bem-amados
o negro potro que me arrasta à insânia
— areia, espiga ou ramo em que levanto
a rosa pela noite entrecortada.

 

Aí temos a vigília de signos como "rosa" e "negro potro", transubstanciações do feminino e da libido.

O espaço não nos permite explorar toda a forma da linguagem ambígua para acobertar a visão irracionalista do mundo. É que, ao volver a página da sexualidade, o fundo do poço entremostra, além das motivações incestuosas já apontadas, sob a epígrafe de Édipo, a impulsão do desejo andróide. Mistérios da paisagem selvagem do inconsciente. A elocução mais patente se encontra no soneto III do Canto II ('Subsolo e supersolo') da Invenção de Orfeu:

 

Vinha boiando o corpo adolescente,
belo pastor e sonho perturbado.
Deus abaixou-lhe os cílios alongados
para que ele dormindo flutuasse.

Ressuscita-o Senhor, essa medusa
de sangue juvenil em rosto impúbere,
desterrado da vida, flor perdida,
irmão gémeo de Apolo trimagista.

Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito
e as convulsões mortais que o imolaram
às sodomas ardidas em seu leito.

Anjo adoecido, alheio dançarino
que dançaste em Gomorras incendiadas,
estás cansado; deita-te, menino!

 

Jorge Lima, em outro passo, ao proclamar "Ó bela adormecida, não tens sexo", retor-"defunta", libera conteúdos incestuosos ao descrever: "Virgem tens prole,/ pois és 10 tempo avó, mãe, filha." Essa "defunta" não passa de "salamandra de asas / da de dormidas brasas." Vastíssimo oceano. De Édipo vem a libido que alimenta ndente soneto XXVI do Canto IV ('As aspirações') de Invenção de Orfeu:

 

O presente libídia, vulva em frente
os possessos de Deus reincarnado,
que te entreabres com visgos e corolas
agiológios de vidas escarlates.

Ó Francesca contínua agonizada,
companheira de infância, tatuada
como as sereias da cintura abaixo,
esses mares de flores hibernadas.

Uma febril dos seres solitários,
treva sem lei em que as papoulas nascem
os santos do deserto suam mijos.

Mas indelével mãe que marca os filhos
com os beijos fundos que jamais se apagam
com a santa baba com que salga o mundo.

 

E eis que nos remetemos a um dos mais belos sonetos alexandrinos da língua portuguesa. Aquele em que Jorge de Lima celebra a vaca "palustre e bela", transmutação da bucólica vaca virgiliana para a esfera freudiana: Soneto XV do Canto I ('Fundação da ilha') da Invenção de Orfeu:

 

A garupa da vaca era palustre e bela:
uma penugem havia em seu queixo formoso;
e na fronte limada onde ardia uma estrela
pairava um pensamento em constante repouso.

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela
que do fundo do sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à noite à outra imagem daquela
que ama me amamentou e jaz no último pouso.

Escuto-lhe o mugido - era o meu acalanto.
e seu olhar tão doce ainda sinto no meu.
o seio e o ubre natais irrigam-me com seus veios.

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto: semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu
o leite e a suavidade a manar de dois seios.

 

São transparentes as reminiscências acordadas "do fundo do sonho": o leite da vaca, cuja busca e cujo sabor apontam para a fase oral da formação humana, se liga ao leite da ama, cujo aconchego se funde com o carinho materno. A tríade vaca-ama-mãe é reversível, e pode ser metamorfoseada na trindade mãe-ama-vaca, a sugerir todas as metáforas cabíveis. Os processos de transferência e de condensação de Freud se concretizam nas esferas do significante e do significado, ao longo da teia das motivações. Como diz o soneto: "o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios."

O poeta encontrou, deste modo, ao celebrar bucolicamente a vaca do seu paraíso terreal, a fórmula mais sublime de atualizar o tema, com "o leite e a suavidade a manar de dois seios".

Na área de ambiguidade, em que o obscuro de algumas imagens abriga o indefinido da pulsão amorosa, o poeta apela para os estados psíquicos de perturbação dos sentidos: a loucura, o êxtase místico ou o simples estado febril. Curiosa, por exemplo, a presença da malária e de outras febres na caracterização de reminiscências confusas. Vejamos o soneto XVII do Canto IV ('As aparições') de Invenção de Orfeu, logo após a manipulação de con­ceitos tão estranhamente eróticos do soneto XXVI, transcrito, com sua "vulva", seus "visgos", sua "urna febril" e sua "santa baba":

 

E de repente, passa-se de novo

a cena da coreia delirante;

e enquanto vem do cimo o cisne de ouro,

os dançarinos mudam de semblante.

 

Senti meus olhos mais que es altos,
sem perceber se o giro estava em mim
ou se nos seres áureos que giravam
como corola viva se entreabrindo.

Era um orbe rodando todo aceso
arrastando-me à vida; e aqui e além
levando-me de vez no eterno giro.

Da visão vale a hora verdadeira.
Ó minha Graça, ó Vida de repente,
que loucura medonha e que alegria.

Depois de transcrever tantos poemas, dá para perceber o cortejo de valores simbólicos e agasalhar, num transbordamento de imaginação, o ciclo do desejo impresso em palavras, fonemas e torneios verbais.

Ambos os livros de Jorge de Lima permitem ao leitor captar a estrutura de conjuntos síg-nicos, míticos ou rituais. Ali prevalecem cultos e costumes agrários, como a indicar a arqueologia do saber do poeta. Seus derradeiros poemas, com efeito, logram entrosar os três regimes simbólicos: o regional, o religioso e o modernista. Mas, ao conduzir seus motivos mais disfarçados, o poeta revela o hibridismo em que a libido se estilhaça em pedaços, fragmentos, sinais de cifras mascaradas. Temos um criptograma no qual se dá a irrupção do afeto arcaico, aprisionado no inconsciente, terreno selvagem.

Há em Jorge de Lima um reservatório inconsciente de toda a sua biografia, significando todas as causas olvidadas ou submetidas ao recalque.

Para suprimir excitações eróticas, deixa que estas se transvistam em imagens que trazem a marca dos estados libidinosos infantis. Tais fantasmas aparentemente absurdos são retirados da fonte biográfica profunda. Na verdade, a repressão afetiva não passa de um bloqueio da libido representada pela imagem. Os símbolos remetem para uma sexualidade imatura, já que insatisfeita. Pansexualismo, imagens, símbolos e fantasmas são condenados a se reduzir a alusões aos órgãos genitais masculinos e femininos. Dai o polimorfismo das satisfações sexuais imaginadas e o polimorfismo das representações. Os avatares de tantas imagens sensuais repousam nos acidentes biográficos e na libido. Os símbolos acabam sendo um sintoma da sexualidade.

 

4 A INVENÇÃO DE ORFEU

 

Passemos ao largo desse aspecto e ingressemos mais fundo na Invenção de Orfeu. Inicialmente, interessa-nos apontar a experiência de construção de dois sonetos xifógafos, que o autor denomina, em marginália, "sonetos gémeos".

A concepção dual é evidente, pois o sentido do primeiro não termina; antes, se atira ao segundo, pois o verso que seria chave de ouro se encerra com a conjunção "mas". Eis os de ne IV e V do Canto II ('Subsolo e supersolo') de Invenção de Orfeu:

 

Se me vires inúmero; através
desse poema, entre as coisas e as criaturas,
como se eu próprio fosse o que outrem é,
dissipado nas páginas impuras,

arrebatado pelo próprio poema,
possesso, surpreendido, fragmentado,
travestido de herói ou de réu, em
quase todos os verbos degredado,

negarás meu irmão, a alma que vive
perdida na ansiedade de si mesma
sonhando a paz, querendo a paz; a paz

mas nas tormentas em que a paz revive
mas nos silêncios em que a paz se lesma
e se intumesce. Eu enlouqueço! Mas

até na álgida paz da insânia. Deus
me busca para ser seu convulsivo
e amado filho em tomo de quem crês
morar a paz que ele destina viva

a todo aquele que lhe faz perguntas.
Eis as respostas nessas vozes gêmeas,
deblaterando sobre teu defunto,
sobre teu louco, sobre o teu recente

corpo hoje ainda nascido e já julgado
e já descido, e já movido nesses
campos da morte, sob os passos, pássaros,

aos veentos indo, sob as noites gastas,
passos sob as caliças, sob os gessos,
sob as bocas sem choros, em seus nadas.

Observe-se a audácia renovadora dos sonetos. O primeiro é introduzido pela cláusula condicional e, num fluxo intérmino do mesmo período, pontilhado de anáforas, num ziguezague indagador, vai-se expandir até o segundo, somente vindo a conhecer o primeiro fôlego no verso inicial do segundo quarteto. Rimas ricas ocorrem, versos agudos se alternam com versos graves, aliterações acodem. E na orquestração verbimusical, o morto reaparece, com seu corpo já nascido e julgado, o horizonte da morte se abre. Insânia, paz e nada formam o tropel das imagens, que apelam até para a resposta divina.

Outra inquietação fecunda se anuncia a seguir, na linha de experiências já tentadas no Livro dos sonetos: a ideia de voltar à mesma estrutura poemática, guardando entretanto respeito ao mesmo ritmo, ou às mesmas rimas, ou às mesmas ideias, ou, ainda, às mesmas construções frásicas, com ligeiras alterações vocabulares. Uma espécie de jogo verbal, de revisitação ao mesmo tema, de variação hipnótica, a fim de, na repetição, obter novo efeito, conquistar nova área de encantamento. Isomorfismo encantatório.

Transcrevem-se, a seguir, os sonetos II e IV do Canto IV ('As aparições') de Invenção de Orfeu, cujo leito comum é patente:

Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.

Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.

Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.

Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.

Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos:
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o incubo cavalo se nutria.

 

A seguir, como desdobramento da mesma atmosfera poética, ressaltemos os sonetos V e o XIV e XV do mesmo canto V, estranha numeração dúplice para o mesmo e único poema, nos quais se manifesta uma bizarra alimária surreal:

 

Entre livro e cavalo o homem instalou
duas escadarias e uma bússola;
depois verificou que sendo duplas
as suas asas dúbias, duplo o voo.

Pousou na escuridão, e repousou,
pois era o dia sete de seus súcubos.
Foi quando se exclamou: Faça-se a luz.
E a luz dentro das trevas se formou.

Moldoror! Mal-e-horror! Ó terra nata,
tão empresa, tão ébria, tão perjura
e sempre, e ao mesmo tempo tão amarga!

Que lume bruxuleia sobre as vagas?
Candelabro ou veleiro ou raio obscuro
que ora sobe na proa ora se apaga?

 

XIV e XV

Nasce do suor da febre uma alimária
que a horas certas volta pressurosa.
Crio no jarro sempre alguma rosa.
A besta rói a flor imaginária.

Depois descreve em torno ao leito uma área
de picadeiro em que galopa. Encare-a
o meu espanto, vem a besta irosa
e desbasta-me o juízo em sua grosa.

Depois repousa as patas em meu peito
e me oprime com fé obsidional.
Tomo-me exangue e mártir no meu leito,

repito-lhe o que sou, que sou mortal.
E ela me diz que invento esse delírio:
e planta-se no jarro e nasce em lírio.

 

 

Também na Invenção de Orfeu Jorge de Lima retorna o tema da rosa, símbolo multívoco em que se anuncia, entre outras, a velha metáfora da mulher. O soneto XVII do Canto V opera com a aproximação de rosa e mulher ausente, numa indefinição de tal porte que o poeta, em lance de felicíssima chave de ouro, acaba por apostrofar a "rosa da morte", não sem declamar o estado de confusão mental que o leva a buscar a "rosa do que for". Eis:

 

Porque a névoa da tarde era sumida
desejei no meu peito um verso puro,
rosa que fosse como suave ida,
apelo que chamasse a quem procuro.

Eis nos ares a rosa que convida,
— a de pétala fugaz e talo obscuro. '
Há qualquer coisa nela em breve vida
mas essa é a vida breve que eu conjuro.

Esse enlevo fortuito é um doce choque,
transluz perdidos olhos com que a via
o desejo de tê-la em doce amor.

Aproxima-te, deixa que te toque
e que te acaricie, ó esposa fria,
rosa da morte, rosa do que for.

 

Entenda-se o novo plano: aquela "defunta amada", destinatária da pavana, reaparece agora sob a forma de "esposa fria" e de "rosa da morte".

Fiquem realçadas as duas características dos derradeiros poemas de Jorge de Lima: a revolução do soneto, como instrumento da expressão lírica, e a construção de um painel imagético polimorfo, que desvela em descontinuidade as recorrências temáticas que acompanharam o poeta ao longo de sua carreira.

Convém salientar, a propósito, que a Invenção de Orfeu se implantou sob influências explícitas de Camões e Dante. De ambos Jorge de Lima extrai valores épicos e líricos. Tornaram-se famosas as paráfrases do poeta alagoano aos trechos e episódios mais notáveis do bardo lusitano.

Também de Virgílio se captam sugestões, assim como de outros poetas clássicos, gregos e romanos. Além de inspirar-se em Dante, Jorge de Lima devota-lhe o soneto XXVIII do Canto IV ('As aparições'):

A chama como em Dante tinha voz
e era trina em seu vértice torcido.
Do cimo dominava os malebolges
e a altiva serra e a ínsula insofrida.

Columba e santo amor, meu canto rude,
— antro sétimo —, salva-o das borrascas,
adeja sobre as vagas luz aguda dos astros,
astro-rei dos demais astros.

Ó divina vigília guia-me entre
os infernos das ilhas solitárias
abandonadas aos inquietos ventos.

E na selva selvagem me sustenta.
Equilibra-me, ó força ascensionária,
voz inicial de meu sempre silêncio.

 

Virgílio não estaria escondido anagramaticamente na "divina vigília"? E que prodígio de verso, a reproduzir três vezes o mesmo sintagma: "dos astros, astro-rei dos demais astros". E o predomínio das rimas toantes? E as siglas que o poema entrega à decifração?

Tudo somado, o que se extrai desta voz poderosa, é o seu tropismo ao eixo surreal da visão em caleidoscópio, de envolta com as lembranças da paisagem bíblica, especialmente aquelas de sopro profético e misterioso, o Apocalipse.

O traço marcante da mirada em poliedro pode ser surpreendido no soneto XVII do Canto V ('Poemas da vicissitude'):

 

Agora os girassóis entardecidos,
e esse lírio e essa rosa tão exangue
e essa mancha de símbolos sombrios
quase como um desmaio ou leve sangue.

Sobre os bosques caiu a tarde cinza
e a estrela temporária se augurou,
pendem das hastes cálices noviços,
e a cansada corola se esboroou.

E os cílios baixam gotejando chuvas
sobre os vidros das horas enterradas
com os momentos dos crimes e virtudes.

Algum arroio corre com essas lágrimas,
mas tão ligeiro pela escarpa aguda
que os olhos de quem vê nunca veem nada.

 

Por último, seja-nos lícito combinar a face surreal, espiritualista e esotérica da concepção poética de Jorge de Lima aos mistérios da redenção religiosa, tão carregada do desencanto da crucificação terrena. Daí o tom apocalíptico de alguns poemas, especialmente os sonetos mais efusivos da Invenção de Orfeu. Veja-se, por exemplo, o poema inicial do Canto VI ('Canto da desaparição'), em que se prefigura a paisagem mortífera do fim do mundo, perpassada pelo símbolo da degeneração, os corvos:

Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais - ossadas de cavalo.

Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar. Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.

E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.

E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais. E esses corvos não vão.

 

O poeta, assim, em alto estilo retomou o alexandrino.

Para não ficar apenas no mundo das devastações, cumpre aludir ao fato de que, num dos extremos finais da Invenção de Orfeu, um canto de esperança se faz ouvir, logo naquele soneto no qual a palavra é posta em evidência, sob a imagem de uma flor com força de redenção:

Não a vaga palavra, corrutela
vã, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, além, sobre a ramada,

mas, a que é a própria flor arrebatada
pela fúria dos ventos: mas aquela
cujo pólen procura a chama iriada,
—flor de fogo a queimar-se como vela:

mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a flor das flores mais ardida,
esta veio do início para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim.

 

Na história da literatura brasileira é impossível encontrar quem tenha ousado tanto com a carapaça formal do soneto. Jorge de Lima abriu seus suportes estróficos à máxima polissemia, habitando-a com os sentidos mais abissais da indagação humana.

                                               ******

*Fábio Lucas (Esmeraldas, 27 de julho de 1931) é um escritor e crítico literário brasileiro. Fundador das revistas literárias Vocação e Tendência, ambas em Belo Horizonte. Desde 1949, tem colaborado em jornais e revistas literárias do Brasil, Portugal, Estados Unidos, México, Canadá, Espanha e Itália.  Foi professor em quinze universidades no Brasil, Europa e Estados Unidos da América. Membro da Academia Mineira de Letras e da Academia Paulista de Letras; presidente, por duas vezes, da União Brasileira de Escritores; diretor do Instituto Nacional do Livro; membro da Associação Brasileira de Crítica Literária; sócio honorário da American Association of Spanish and Portuguese. Foi agraciado em 1970 com o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Estudos Literários (ensaios).

Fonte da biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A1bio_Lucas

 

Fotografia de JORGE DE LIMA por Jorge de Castro.

 

Nesta biografia também aparece uma vasta lista de textos do crítico ao longo de seus 93 anos — em 2017. Na relação de Crítica Literária foram citados 35 textos, em ordem cronológica. Mas não aparece a referência ao texto "O soneto inovador de Jorge de Lima", estampado na edição n. 3 da revista POESIA SEMPRE. Como o texto saiu publicado em edição não comercial e não aparece, até onde pesquisamos, em nenhuma das compilações da obra de Fábio Lucas, achamos por bem reproduzi-lo aqui no Portal de Poesia Ibero-americana, edição digital sem fins lucrativos (os custos de produção são de Antonio Miranda em favor da divulgação de nossa poesia). Se alguém reivindicar direitos autorais, com muito pesar, apagaremos a página e veremos como defender-nos...) Mas este texto extraordinário deve chegar ao público, inclusive aos que não têm acesso aos livros impressos, que moram em cidades sem livrarias e bibliotecas, ou que não têm recursos... Grande parcela de nossos leitores é constituída por estudantes e professores. E acreditamos que os leitores com posses costumam entusiasmar-se com a leitura dos textos e partem para adquirir obras dos autores. Um círculo virtuoso...

 

Página publicada em dezembro de 2017.


 

 

 
 
 
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