Home
Sobre Antonio Miranda
Currículo Lattes
Grupo Renovación
Cuatro Tablas
Terra Brasilis
Em Destaque
Textos en Español
Xulio Formoso
Livro de Visitas
Colaboradores
Links Temáticos
Indique esta página
Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


POESIA: MODOS DE VER
por Heleno Godoy 

Extraído de:

GODOY, Heleno.  Leituras de ficção e outras leituras. Goiânia: Ed. PUC-GO/Kelps, 2011. p. 68-78.)

 

         A pergunta “O que é poesia?” tem sido repetida desde sempre, em toda cultura e literatura. Pode-se afirmar que as respostas para ela são tão inúmeras quantos são os poetas que o mundo já teve e tem, em qualquer língua, e – podemos imaginar – quantos são seus leitores também. Desde que Platão propôs a expulsão dos poetas de sua utópica república, por acreditar que a poesia por eles produzida exacerbaria as emoções, fragilizando e desequilibrando a razão; desde que Aristóteles, em sua Poética, definiu poesia como “uma imitação da vida”, e, séculos depois, Horácio, em sua Epístola aos pisões, encontrou para ela as funções de “ensinar e deleitar” ao mesmo tempo, muitos foram os filósofos, estetas e mesmo poetas, grandes ou não, que tentaram defini-la, conceituá-la ou entendê-la. É disso que quero falar hoje e agora: de alguns vários modos de ver a poesia.

Não quero, no entanto, falar do que já é bastante conhecido por nós, no Brasil, como a “Poética” (Libertinagem) e a “Nova Poética” (Belo belo), de Manuel Bandeira; nem de “Consideração do poema” ou “Procura de Poesia” (A rosa do povo), de Carlos Drummond de Andrade; nem de “Psicologia da composição” (Psicologia da composição) , de João Cabral de Melo Neto; nem muito menos quero falar , caminhando de volta ao século XIX, de “Profissão de Fé” (Poesias) ou de “Ao poeta” (tarde), de Olavo Bilac.1 São todos grandes poemas, mas já muito estudados e discutidos, objeto de análises e de estudos minuciosos.

Prefiro falar de alguns escritores menos conhecidos, e outros até muito conhecidos, mas cujas idéias não estão sendo por nós discutidas e avaliadas, estudadas e analisadas, aqui neste simpósio. A maioria dele é de língua inglesa; afinal, a especialidade que tenho, como Professor Titular de Literatura Inglesa, nesta faculdade, e com a qual me coloco diante de vocês hoje. Alguns dos poetas que citarei nem pertencem ao elenco de minhas preferências, eles serão apresentados e terão algumas de suas idéias discutidas em virtude da diferença ou da novidade, da justeza de seus pensamentos e correção de suas afirmações, até mesmo pelo insólito e pela estranheza de algumas ideias.

Posso, por exemplo, começar citando o poeta norte-americano, nascido no estado de Illinois, Carl Sandburg (1878-1967), que foi também cantor folclórico e biógrafo de Abraham Linlcon. Em seu livro Good Morning, América (Bom dia, América), de 1928, ele escreveu trinta e oito definições de poesia, das quais, colhidas ao acaso, apresento-lhes algumas:

 

Poesia é uma projeção, através do silêncio, de cadências arranjadas para quebrar aquele silêncio com intenções definitivas de ecos, sílabas, comprimentos de ondas.

Poesia é o diário de um animal do mar vivendo na terra e querendo voar no ar.

            Poesia é uma série de explicações da vida dissolvendo-se em horizontes muito cambiantes para explicações.

Poesia é uma busca de sílabas para atirar contra barreiras do desconhecido e desconhecível.

Poesia é o silêncio e a fala entre a raiz úmida e esforçada de uma flor e a florescência iluminada pelo sol daquela flor.

Poesia é o abrir e fechar de uma porta, deixando aqueles que estavam olhando a imaginar o que viram por um breve instante.2

 

         Não precisamos de outras definições para perceber que, para esse Sandburg, poesia é, acima de tudo, emoção no mais elevado grau. Talvez por influência de sua Patrícia Emily Dickson (1830-86), que ainda no século XIX dissera que “[s]e leio um livro e sinto um frio que fogo algum pode aquecer, sei que é de poesia”.3 Teria ela lido em Joham W. Goethe, o autor de Fausto, que “[o] homem surdo à voz da poesia é um bárbaro”? Ou em Miguel de Cervantes que “[a] poesia talvez se sobressaia nas coisas mais simples”?

São concepções baseadas na emoção, principalmente, inclusive para estabelecer, juízo de valor, numa clara alusão à superioridade de cristãos e europeus sobre povos que, provavelmente, não tinham poesia – o que se pode inferir da frase de Goethe (quem seriam os bárbaros se não os não europeus?). O entendimento da poesia no plano inteiramente individual como parece ser o caso da poeta norte-americana, leva a uma falácia, a de que qualquer conceito, idéia ou ainda definição é válida, e cada um entende poesia à sua maneira – o que abre um leque de possibilidades infinitas e não nos ajuda de forma alguma, em nossa compreensão do fenômeno poético. A ideia de Cervantes é um pouco mais delicada, mas não menos enganadora, pois pressupõe ser a poesia uma arte cujo propósito é o ensino da moral somente. Se não, por qual motivo deveria a poesia se simples ou buscar a simplicidade? Isso nos leva a indagar se a poesia é simples ou deve ser simples, o que leva a outra pergunta, que parece preceder essas duas anteriores: o que é ser simples? Devemos abandonar o que é aparentemente complexo por aquilo que é aparentemente é simples? Nesse caso, seria preferível um pequeno poema bucólico a todo Os Lusíadas? Qualquer que seja a resposta, ela deverá levar em conta a idéia de que poesia, sendo arte, dependerá do ingenium e dá ars, nas palavras latinas de Horácio, ou do “engenho” e da “arte”, tal como as traduziu Camões, ao fim da segunda estrofe de Os Lusíadas.

Cantando espalharei por toda parte,
         Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

         O grande poeta português não está fazendo mais do que distinguir entre a “inclinação natural para” ou talento (até mesmo a genialidade, por que não?)/ o ingenium/ e  a arte ou técnica, o “saber fazer”/ars. Se é verdade que ars vem do grego Arete, que significava “fazer da melhor forma possível”, o conceito de ars em latim, deriva também do grego tekhnikós e seu sentido de “relativo à arte, à ciência ou ao saber, ao conhecimento ou à prática de uma profissão”, consequentemente a um “saber fazer”. Assim, ars latina e tékhné grega se equivalem, o que nos leva à compreensão final dos versos de Camões: ele só poderá fazer o que se propõem e seu poema (cantar os grandes feitos guerreiros dos portugueses e a história de seu povo e de seus reis mais ilustres), se for possuidor, em doses iguais de talento ou disposição/inclinação natural (engenium) e da técnica, de destreza como poeta, de conhecimento da arte e da poesia e de sua construção (ars/tékhné). Não basta, evidentemente, querer fazer, é preciso saber como. Para voltarmos à ideia de Cervantes até simplicidade pretendida exige uma técnica adequada, a mais correta e melhor possível. Dessa forma, a simplicidade, exige capacidade, e a poesia não é, nem pode ser, tão simples assim como quer o grande criador do Dom Quixote.

         O poeta francês André Chénier (1762/1794), decapitado pelo Regime do Terror, após a Revolução Francesa, e cuja vida se tornou uma ópera clássica do verismo italiano (Andréa Chénier , de Umberto Giordano), parece concordar com a ideia de Camões: “A arte faz os versos mas só coração é poeta”, escreveu ele. O poeta e dramaturgo indiano, nascido em Calcutá, Rabindranath Tagore, Prêmio Nobel de 1913, seguiu a mesma minha ao dizer que “a poesia é o eco da melodia do universo no coração dos homens”.

         Seria preciso muita dose de coragem, quem sabe crença demais nos homens, para sermos capazes de pensamentos tão elevados. Coragem ou não, usada por eles como escudos, para a proteção de suas ideias e de seus ideias, muitos foram os poetas que viram a poesia em sua acepção de ‘arte nascida na emoção’. Para Percy Bysshee Shelley, poeta romântico inglês do início do século XIX (que morreu afogado, na Itália em 1822), “[a] poesia é uma recordação dos melhores e mais felizes momentos dos melhores e mais felizes talentos”, ideia em que o principio de saber fazer até parece se equilibrar com o da emoção.

         Seguindo esse tipo de raciocínio, Octavio Paz, poeta mexicano premiado com o Nobel (1990), acha que “[a] poesia é o ponto de intersecção entre o poder divino e a liberdade humana”, como se o poeta se libertasse de amá-las que lhe são exteriores e também sobrenaturais, ao escrever versos. Nessa perspectiva, a poesia tem origem divina ou é a manifestação do não-divino? Qual seja a resposta dada, justificaríamos a ideia platônica da necessidade da expulsão dos poetas de sua imaginada república. Por não conseguirem preservar a razão acima da emoção, já que a poesia nem pode ser divina, nem sobrenatural. Não cause espanto, na mesma corrente de pensamento, que Octavio Paz tenha dito também que “[a] poesia deve ser um pouco seca, para que queime e, desde modo, nos ilumine e nos aqueça”. As ideias do grande poeta mexicano parecem ainda pagar tributo a uma concepção de poesia como resultado da exacerbação das paixões e da emoção, embora a leitura de sua obra revele um poeta cerebral e mais preocupado com o “saber fazer” do que com a emoção apenas.

         Outros poetas foram ainda além dessa emocionalidade, exagerando-a em suas concepções de poesia. Para o francês Léon Daudet, “poetas são homens que conservam seus olhos de criança.” Disso não deveríamos discordar, se ele se referisse ao fato de os poetas devem ter, para o mundo, um olhar sempre novo e inaugural, na linha do que Fernado Pessoa escreveu, no final da primeira parte de “O guardador de rebanhos”, de seu heterônimo Alberto Caeiro, quando afirmou saber “ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...”.4 o que não se pode é concordar com a ideia de que o poeta tenha, para o mundo, um olhar inocente e descompromissado. Fernando Pessoa não pesava assim, será isso que Léon Duadet pensou? Esperemos que não.

         O poeta espanhol José Hierro (1922-2002) acreditava que “[a] poesia se escreve quando quer” como se fosse ela dotada de vontade própria e não nascesse da vontade do próprio poeta. Por trás da aparentemente simples referência à dificuldade da produção da poesia, de se escrever poesia, esconde-se uma concepção ainda emocional, sobrevivente de um romantismo mal disfarçado e passadista. Para a também espanhola Carmem Conde (1907-1996), “[a] poesia é o que [nos] sobra no coração e [nos] sai pela mão”. Talvez seja essa mais desastrada, malgrado a boa intenção por trás dela, das concepções e tentativas de definições vistas por nós até agora. Tenho medo de, ao balançar as mãos, sacudi-las para eliminar delas qualquer umidade, desperdiçar poemas que muito bem poderia ser aproveitados posteriormente. Essa pode parecer apenas uma afirmação enormemente irônica minha, em total desrespeito a Carmem Conde. Não é apenas isso, é muito mais a necessidade de condenarmos, evitarmos, concepções de poesias como uma arte determinada apenas pela emoção.

         Parecem se esquecer todos esses poetas do que Aristóteles já dissera, em sua Poética, que “[a]o que parece, duas causas e ambas naturais geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.5 Ora, tal afirmação destrói a possibilidade da “inspiração” entendida como se vinda ou nascida de causas acima e além de nossa capacidade de compreensão e controle e ainda mais, eliminou, para Aristóteles, a possibilidade de a Lírica ser um gênero. Para ele contavam apenas a o drama (tragédia e comédia) e a epopéia, com a evidente superioridade da tragédia sobre todas as outras formas. Mas a Aristóteles foi um pouco além, ao considerar que “[a] poesia é algo de mais profundo e mais filosófico do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular,” ampliando muito mais ainda a sua ideia de que poesia é uma construção deliberada, não uma obra do acaso. Seguindo esse raciocínio, o poeta inglês sir Philip Sidney (1554-1586) afirmou, em sua Uma defesa da Poesia (publicada postumamente em 1995) que, “a poesia é superior à filosofia e à historia, pois se a filosofia é capaz de dar  preceito e a historia o exemplo, a poesia é capaz de apresentar os dois. Não usemos tais afirmações para insultar filósofos ou historiadores; afinal, estamos do mesmo lado, não em campos opostos.

         Aristóteles, em todo caso, não foi o único a entender a poesia como algo mais que simples emoção e para além da própria emoção. Edgar Allan Poe (1809-1848), famoso escritor norte-americano de historias de detetive e de terror, foi um eximo poeta romântico, preocupado com os aspectos teóricos e práticos da construção do poeta. Não causa estranheza que tenha, por isso, escrito que três ensaios essências sobre o assunto: “Análise racional do verso”, “O princípio poético” e “A filosofia da composição”. No primeiro, compara a técnica métrica do verso inglês com aquela dos versos gregos e latinos; no segundo, expõe suas ideias sobre poesia e, um terceiro, conta como escreveu/construiu seu famoso poema “O corvo”. Suas ideias sobre a musicalidade do poema e da importância da musicalidade pro verso para a construção da poesia e do poema, tornaram-se centras para a poesia simbolista, na segunda da metade do século XIX. Para Poe, “[a] música quando combinada com uma ideia agradável é poesia [...] a ideia sem música é prosa pela própria exatidão”,6 que nos remete imediatamente ao cérebro verso  inicial do poema, “Arte Poética’, de Paul Verlaine  (1844-1896): “A música, antes de todas as coisas...”.

         Os românticos ingleses, Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e William Wordsworth (1770-1850) talvez nos surpreendam mais que os outros poetas até aqui citados, falando sobre poesia. Para Coleridge, se a prosa era a possibilidade de “palavras na melhor ordem”, a poesia seria a utilização das “melhores palavras na melhor ordem”. Isso combina com a afirmação de Wordsworth de que “poesia e a melhor palavra no melhor lugar”. Se ajuntarmos a essas afirmações a ideia do grande poeta Galês (do País de Gales), naturalizado norte-americano, W[ystan], H[ugh], Audem, de que “[u]m poema é um artefato verbal que deve ser tão hábil e solidamente construído como uma mesa ou uma motocicleta”, então nos encontramos fora de qualquer romantimos ilusórios e caminhamos da modernidade para a pós-modernidade.

         Poesia, como se vê, é construção: não uma mera demonstração de habilidades (a técnica por si só), mas uma engenhosa combinação, como queria Horácio, de talento e técnica. Ainda mais: poesia não tem sentido senão quando lida, quando, na concepção tão antiga do Arcadismo, o autor e sua obra encontram seu público. Em outras palavras, tão caras à Vanguarda das décadas de 1950 e 1960, poesia é objeto de uso. E de um uso que cria (ou exige) um novo leitor, uma participação mais direta e dinâmica do leitor na construção do poema e da poesia, fazendo o leitor passar de simples consumidor, a co-partícipe ou co-autor. Não seria por isso que Roland Barthes (1951-1980) disse que a poesia contemporânea “tenta transformar o signo de novo em sentido: seu ideal último seria o de atingir não o sentido das palavras, mas o sentido das coisas elas mesmas.”? Para o teórico e crítico francês, esta é a razão pela qual a poesia “obscurece a linguagem e aumenta tanto quanto for possível a abstração do conceito e a arbitrariedade do signo, ampliando o limite da ligação entre o significado e o significante”.7

         Em todo o caso, como alguns poetas, sem escrever teoria ou crítica, mas só poemas, abordam estas questões todas? Quero lhes apresentar, em primeiro lugar, um poema que traduzi, do poeta norte-americano Donald Caswell (1948-)

 

         Porque Sou um Poeta

         Não sou poeta. Nem sou um carpinteiro. Algumas vezes, penso que preferiria ser um carpinteiro, mas não sou. Por exemplo, o Gene, meu amigo carpinteiro, está construindo uma casa. Eu passo por lá. Ele me dá um martelo e diz, “Comece a martelar,” Eu martelo, nós martelamos. Olho para cima. “Onde está o telhado?” “Não cheguei tão longe, ainda,” diz ele. Eu me vou e os dias se vão, e eu passo por lá outra vez. O telhado está no lugar e eu me vou e os dias se vão, e eu começo um poema. Estou pensando em estrelas e escrevo um poema sobre estrelas. Pego de uma máquina de escrever e começo a martelar. Logo, há páginas, acres de palavras sobre estrelas e o café acaba e, então, vou para um restaurante. Compro uma cerveja e uma mulher perto de mim me diz como ela foi violentada pelo seu padrasto, quando tinha apenas dez anos, e, então, como que ela fugiu com um ex-convicto, que foi morto por causa de cocaína, e deixou-a grávida e, então, como ela se casou com um recruta e se mudou para a Alemanha, onde a criança morreu de doença nos rins e, então, como ela voltou pra casa pra morar com a mãe dela. E eu bebo um monte de cerveja. Depois, vou lá para fora e me deito num lote vago, olhando pras estrelas e pensando quantas delas existiam e que poema maravilhoso elas dariam. E caio no sono, com uma cerveja na mão. De manhã, a cerveja, as estrelas e minha carteira se foram e, então, vou ver Gene e a casa está pronta. Uma família está vivendo lá e eles me mostram o cachorro deles. Há flores desabrochando, repolho sendo cozido na cozinha. Então, vou para casa e escrevo um outro poema. E, um dia, o Gene aparece. Olha para o poema e agora são doze poemas, todos certinhos, empilhados e prontos para serem lidos e ele pergunta “Onde estão as estrelas?” E eu digo, “Não cheguei tão longe ainda.8

 

         Este poema confirma muitas das coisas que discutimos até agora, a partir da idéia aristotélica de que poesia é uma construção. A forma da prosa, escolhida para a construção do poema, já é um indício disso. Depois, o uso do verbo “martelar”, tanto para a construção da casa quanto para o ato de escrever o poema. Mas se na primeira vez é um ato consciente e elaborado, da segunda vez, para o datilografar de poemas na máquina de escrever, é um ato meramente mecânico, tanto que, logo após trabalhar aparentemente por pouco tempo, o poeta diz ter concluído “acres” de poemas, isto é, muitos poemas sobre estrelas, aquilo que, na opinião de seu amigo Gene, está muito longe ainda, se estão faltando as partes da casa necessárias para a sustentação do teto. Tantos poemas escritos em tão pouco tempo denunciam um desleixo, se não um descaso pela forma da construção dos poemas.

         Por outro lado, só quando o poeta entra em contato com uma possível “realidade da vida”, com todo o seu exagero melodramático (a muito triste história da garota que se casou, foi deixada só, perdeu o filho e voltou para casa para cuidar da mãe), mas com o aspecto prático da perda de bens materiais (cerveja e carteira com dinheiro), por estar sonhando ainda com o inatingível (sonhar com estrelas deitado num terreno baldio), pode o poeta retomar seu trabalho e, aí sim, não escrever “acres” ou inúmeros poemas, mas apenas doze, sem estrela alguma, por não ter chegado “tão longe ainda”. Podemos inferir que a lição aprendida pelo poeta é de que a poesia é uma construção lenta, difícil e por etapas, consciente e responsável: não é fruto apenas da imaginação, nem da inspiração, mas do trabalho paciente e constante. É por isso que o poeta, antes de voltar à escrita de sua poesia, necessita passar (na seqüência desenvolvida no poema) pela casa que Gene estava construindo e que foi adquirida por uma família simples, que cozinha repolho, planta flores e tem um cachorro – mas que habita a casa, tornando-a objeto de um uso constante, contínuo. É essa a sua aprendizagem, a de que o trabalho da poesia deve ter essa mesma constância e esse mesmo uso. E mais, deve ser uma construção lenta e demorada, parte por parte cuidadosamente elaborada.

         Paul Valéry, grande teórico de poesia e importantíssimo poeta francês, escreveu certa vez que “[o]s deuses propiciam o primeiro verso; o poeta escreve os outros”. Seu conterrâneo Jean Cocteau acrescentaria que “[o] poeta não sonha, conta.” O poeta imaginado por Donald Caswell passou por experiências que o levaram a tal aprendizado: não basta sonhar com estrelas, elas não farão um poema surgir da folha em branco do papel; não basta sonhar, é preciso, antes e acima de tudo, “contar”, ter um rumo e um plano, desenvolver conscientemente uma ideia, uma emoção, um pensamento.

         Em segundo lugar, quero lhes apresentar um outro poema norte-americano, agora da poeta, dramaturga e escritora de livros infantis, Eve Merriam (1916-92), também em tradução minha:

 

         Resposta à Pergunta: “Como se Pode Ser Poeta?”

tome a folha de uma árvore
trace sua forma exata
suas bordas externas
e suas linhas internas

memorize o modo como se prende à haste
(e como a haste arqueia a partir do galho)
como em abril ela se expande
como em julho ela se enrijece

em fins de agosto
amasse-a em sua mão
para que você cheira sua tristeza de fim de verão

mastigue seu talo de madeira

ouça seu tagarelar de outono

veja como no ar de novembro ela se pulveriza

no inverno então
quando não há folha que sobre

inventa uma.9

 

         Eve Merriam confirma-nos também a idéia de poesia como uma construção. Acima de tudo, como uma invenção de forma e linguagem. Poderíamos dizer no plural, de formas e linguagens, pois é exatamente isso que ela nos pede para fazer, em relação à folha de uma árvore, aqui transformada em belíssima metáfora de poesia ou poema: uma construção paulatina, detalhada, consciente e articulada – em suma, uma invenção, um olhar sempre novo ou renovado do mundo e das suas ordens, seus contornos e hastes, seus cheiros e sabores, os aspectos inúmeros de sua interligações e relacionamentos.

         Mas isso pode ser complicado e difícil de se conseguir, ninguém duvida ou nega. A poeta zimbabuense, Freedom T. V. Nyamubaya (1960-), guerrilheira na luta pela independência de seu país, o Zimbábue, e ainda lutando hoje por melhores condições de vida para seu povo, escreveu um poema chamado “Poesia”, em que fala das dificuldades aludidas acima e que, em terceiro lugar, quero lhes apresentar agora, em tradução também minha:

 

Poesia

Alguém disse:
Você não é poeta,
Pois se esqueceu de que
Poesia é uma arte e –
Arte é ritmo com sentido.

Agora, o que é ritmo,
Se posso perguntar?
Alguns dizem que são sílabas marchando,
Outros, que são sons marchando,
Agora me digam como casar os dois.

Lutamos contra Shakespeare no campo de batalha.
Negros lutaram contra boers com suas lanças.
Estas são sílabas marchando
E isto é arte para alguns,
Mas como posso casar os dois?

Que tal um ritmo diferente?
Pessoas morrem nos guetos,
De ataques da polícia e tiros do exército,
Trabalhadores sufocam dentro de minas de carvão,
Cavando o carvão que não têm como comprar,
Para cozinhar diariamente e se alimentarem.
Coisas poéticas estas.

Então, concordemos em discordar –
A arte serve.
10

 

         Freedom T. V. Nyamubaya fala-nos de várias dificuldades, começando pela teoria da construção do poema: o que é ritmo e onde é possível encontrá-lo; o ritmo da vida não seria (ou deveria ser) o mesmo da poesia? Ainda: quais temas a poesia deve abordar ou incorporar às suas formas; existiria uma forma para isso, um modo de se fazer isso? Qual? Como “casar” sentido e forma? Como “casar” idéia e forma? Como “casar” no poema as dificuldades da vida e as dificuldades de construção da poesia?

Só resta, para concluir minha fala hoje, que lhes apresente, em quarto lugar, um pequeno poema de um grande poeta chileno, Nicanor Parra (1914-), ganhador, em 1991, do Prêmio Internacional Juan Rulfo. Matemático e físico, que foi professor de Física teórica na Universidade do Chile e é irmão da célebre cantora Violeta Parra, Nicanor Parra escreveu certa vez, num poema intitulado “Manifesto”, que os poetas deveriam escrever, “contra a poesia de nuvens”, uma poesia “da terra firme”, e que eles também deveriam manter a “cabeça fria” e o “coração quente”, para serem “terrafirmistas decididos”.11

Pois bem, em um pequeno poema, Nicanor Parra concentrou todas as dificuldades que estive discutindo com vocês aqui, hoje. Apresento-o agora, em tradução também minha:

Jovens Poetas

Escrevam como quiserem
Em qualquer estilo de que gostarem
Muito sangue foi derramado sob a ponte
Para se seguir acreditando
Que ela é a única via correta.

Em poesia, tudo é permitido.

Com somente uma condição, é claro
Que vocês melhorem a página em branco.
12

 

         Este poema é suficiente claro no que diz, não demandando explicações ou comentários. Sempre que o leio, sinto um arrepio. Como poeta – e acho que qualquer escritor concordará comigo agora –, sou um amedrontado pela página em branco, uma superfície sempre arriscada. Parafraseando Gérard Genette, eu diria que devemos constantemente nos lembrar de que estar à superfície significa arriscar um abismo, um abismo sobre o qual, desafiando “uma profundidade”, ousamos indefinidamente arriscar a um “naufrágio”.13

         Sinto muito se termino com uma nota pessimista, como se não bastassem todas as dificuldades já vistas e comentadas – e nem chegamos – não devemos ter ilusões quanto a isso –, a esgotar o assunto. E em verdade, mal o arranhamos, mal avistamos ou tocamos a ponta do iceberg.

         Para a existência da poesia, tem razão Nicanor Parra, é preciso que os poetas melhorem a página em branco.

 

Notas

1 Remeto o leitor para as obras completas desses autores, em edição da Editora Aguiar, do Rio de Janeiro, na ordem em que os poemas foram citados: Libertinagem, p. 188; Belo belo, p. 363; A rosa do povo, p. 137-39; Psicologia da composição, p. 93-102; Poesias, p. 89-92, e Tarde, p. 268.

2 As definições de Carl Sandburg, assim como a do todos os outros poetas que aparecem nesta comunicação, podem ser facilmente encontradas na internet, em sítios como:

http://www.dwpoet.com/342_poetry_defs,htm

http://www.midnightedition.com/poem.htm

www.tnellen.com/cybereng/poetry.htm

www.geocities.com/ujjwalkr/Sandburg.html

O sítio do Prof. Michael P. Garofalo, http://gardendigest.com/poetry/quoap1.htm, também é muito útil.

3 Sobre Emily Dickinson é importante a consulta a sítios como: http://www.esu.edu/ ~campbell/index.html (este sítio, da professora Dra. Donna M. Campbell, é uma fonte excelente de informações) ou www.tnellen.com/cyber eng/poetry.htmal, já citado. Também, para poesia em inglês, principalmente norte-americana, o site do professor Dr. Alan Filreis: www.writing.upenn. edu/~afilreis/home.html   

4 Remeto o leito para a edição da obra poética pela editora Aguiar, p. 139.

5 A afirmação aparece no início do Capítulo IV, parágrafo 13, na tradução de Eudoro de Souza. Veja-se o volume IV, da primeira edição da coleção “Os pensadores”, pela Abril Cultural, p. 445.

6  Para os ensaios, poesia e ficção de Edgar Allan Poe, consulte-se Ficção completa, poesia e ensaios” (Rio de Janeiro: Aguiar, 1965); infelizmente, os ensaios “O princípio poético” e “Análise racional do verso” não constam nessa edição das obras completas do autor.

7 Ver os sítios: http://contemporarylit.about.com; http:/marcianos.com/fr/poesia.html; http:// pensamientos. org/pensamientospoesia.htm 

8 Este poema pode ser encontrado no sítio, já citado: www.tnell.com/cybereng/poetry. html

9 Este poema de Eve Merriam pode ser também encontrado no sítio citado na nota anterior.

10 A poesia e partes de um diária da poeta zimbabuense podem ser lidos no sítio: <http//zimbabwe.poetryin ternational.org/cwolk/view/17265> ou, simplesmente, no sítio da Poetry International Web: http://www.poet ryinternational.org> 

11 Existem muitos sítios com poemas de Nicanor Parra. Para o poema “Manifesto” e outro versos sobre poesia, ver o site: http://www.geocities.com/Athens/Forum /9707/Parra,html

12 Este poema está o sítio citado na nota 8.

13 Ver “Complexo de Narciso”. Figuras (São Paulo: Perspectiva, 1972), p. 27.


Voltar para o topo da página Voltar para Ensaios

 

 

 

 
 
 
Home Poetas de A a Z Indique este site Sobre A. Miranda Contato
counter create hit
Envie mensagem a webmaster@antoniomiranda.com.br sobre este site da Web.
Copyright © 2004 Antonio Miranda
 
Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Home Contato Página de música Click aqui para pesquisar