| Cecília Meireles: só  sombra por ANTONIO CARLOS  SECCHIN           Em outubro de 1963, a Editora Livros de  Portugal publicou, com esmerada apresentação gráfica, aquele que viria a ser o  testamento poético de Cecília Meireles: Solombra.       A grande escritora, falecida em 1964,  reuniu neste livro 28 poemas de rigorosa arquitetura: todas as peças comportam  5 estrofes de 13 versos, as 4 primeiras sob forma de tercetos alexandrinos, e a  derradeira em configuração de monóstico, com métrica variável entre 8 e 10  sílabas.      Nesse padrão formal reúnem-se alguns dos  mais densos textos de sua obra, formando um livro austero e complexo, que  desafia o leitor a partir do próprio título, "solombra". Trata-se de  signo que abriga em si uma irresolvida tensão de opostos, simultaneamente reino  de sol e de sombra. A enigmática epígrafe Ceciliana, reproduzida em manuscrito  na capa do volume, lança luzes (ou mais sombras?) na questão: "Levantei os  olhos para ver quem/ falava. Mas apenas ouvi as vozes/ combaterem. E vi que era  no Céu/ e na Terra. E disseram-me: Solombra".      Antes dos poemas propriamente ditos, já  nos deparamos com mensagem elíptica e cifrada. De quem são as vozes? Por que -  e o quê - combatem? Oposição entre Céu e Terra? A resposta à demanda implícita  da poetisa se dá através da palavra "solombra", o que, a rigor, nada  esclarece, mas muito insinua: sim, a máquina do mundo se oferta numa zona de  pouca inteligibilidade "prática", pois as lições da Natureza,  reverberadas pela poesia, apontam para um cosmo além da compreensão humana, com  a ressalva de que a transcendência, se assim podemos dizer, está contida na  própria matéria, não além dela.      A força irreprimível do que vive não cabe  em unívocas categorizações, e uma espécie de desamparo cósmico toma conta do  artista, condenado a contentar-se com as sobras da sombra: "Só vejo o que  não vejo e o que não sei se existe". O sentimento de estar condenado a  desconhecer no gesto mesmo de buscar o conhecimento perpassa todo o livro:  "O que amamos está sempre longe de nós". Tudo é "equívoco do  tempo, os jogos da cegueira/ com setas negras na escuridão". Além de  cósmico, o desalento também é crónico, infiltra-se na temporalidade humana, sem  fornecer qualquer vislumbre de resgate ou redenção: "Dos adeuses/ que  vamos sendo - ó ramos de ossos, flor de cinzas! -/ é que morremos".      A cegueira primordial do homem já se  inscreve na epígrafe, quando levanta os olhos e, em vez de ver, ouve. Outro  aspecto desafiador da obra reside na tentativa de identificação do ser ou dos  seres com quem Cecília tenta estabelecer um campo de interlocução. Se  desconhecemos quem, no começo, lhe dirige a palavra, proferindo  "Solombra", seria ao menos possível detectar a quem ela contempla,  nas incidências do "tu", do "nós" e até do "vós"  que os textos comportam? Tanto o emissor inicial quanto os destinatários parecem  habitar uma zona de flutuação e de impalpabilidade. É o que atesta o primeiro  verso do primeiro poema: "Vens sobre noites sempre. E onde vives?"  Têm-se, aí, o espaço físico noturno, que dilui o nítido perfil do mundo  ("noites"); a temporalidade vedada à perecível humanidade  ("sempre"); e o desconhecimento daquilo/daquele com que/com quem se  supõe conviver ("onde vives?"). Portanto, o espaço Ceciliano é  "desprendido de lugares", assim como o tempo é "separado de ponteiros".  Como corolário de tais indefinições, não surpreende que a boca (a voz) poética  seja "apenas instrumento de segredos", ou sinta "o mundo chorar  como em língua estrangeira". Desse modo, a poesia compartilha códigos  cifrados, em vez de pretender-se decifradora da realidade: "Isto que vou  cantando é já levado/ pelos rios do assombro". Em rios de assombro fluímos  - sem desaguar em lugar nenhum, pois não há pré-determinado oceano que nos  espere, sinaliza Cecília: "Nada foi projetado e tudo acontecido".      Como nenhum nome corresponde plenamente a  esse "tu" que se convoca, qualquer nome pode provisoriamente  preenchê-lo: o amor, a própria vida, o leitor. Mas talvez o termo que mais bem  represente esse etéreo interlocutor seja "o inalcançável": a poesia  se encaminha para aquilo que, sem cessar, lhe escapa. Do mesmo modo que vê o  que não vê, Cecília pretende falar do inominável, cuja miragem se projeta em  palavras de escasso trânsito, a exemplo de "solombra". É certo que,  no bojo de antinomia, o caminho Ceciliano revela-se pouco solar: quase só  sombra. Os admiráveis textos do livro reservam pouco espaço ao fulgor do dia,  expondo-se frente à frieza muda das cintilações noturnas. "O secular  ouvido espera, como em ruínas" - não há resposta às inquirições,  dissolvidas no vácuo da solidão absoluta: "Longe passamos. Todos  sozinhos".      Ainda assim, ou talvez por isso, a poesia  não se deixa calar. No famoso "Motivo", de Viagem (1939), Cecília  falava do acolhimento do efémero nas frágeis asas eternas da arte. Vinte e  quatro anos depois, um poema de Solombra, reelabora, com maior ambiguidade, o  mesmo tema: "Uma vida cantada me rodeia". A certeza expressa em  "Sei que canto. E a canção é tudo", de 1939, cede passo, em 1963, à  inflexão dubitativa de "Por que roubar à sorte do silêncio/ o náufrago,  entre mil, que em nós levamos?" Esse texto desdobra um novo "motivo":  "o canto nos envolve e rasga o tempo/ e [...] nos deixa a salvo".      Arte como território de conforto e  proteção? Não. Se recordarmos os versos anteriores, concluiremos que a arte nos  salva, sim, mas apenas para deixar-nos vivos em meio a um naufrágio, sem que  sequer saibamos: do lado de fora faz sol? Faz sombra? Faz solombra.   Referência MEIRELES,  Cecília. Poemas escritos na índia. In: . Poesia completa. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2001.
   
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