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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

carlos nejar: a descoberta do homem

 

 

          Extraído de

 

 

 

CHAGAS, Wilson.  A Inteira voz: ensaios rio-grandensis. Porto Alegre, RS: Letras de Hoje, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Conselho Federal de Cultura, 1971.  91 p. (Letras de Hoje) 14,5X21 cm.    cm  Inclui textos sobre os poetas Carlos Nejar, Mário Quintana, Heloisa Jahn, Camilo Rocha. 

 

              

         "... que é do homem, / quem o pode encontrar?” —

          Carlos Nejar, O Campeador e o Vento.

 

 

É um poeta que não se dá desde logo. O jogo escachoante das imagens, não enquadradas numa sintaxe coerente, violentam o significado, impõem uma nova visão, um^ nôvo universo, não obstante inexpresso em grande parte. Algo de embrionário, de inacabado e informe, no plano das significações, são os seus dois últimos livros, em particular. No entanto, é ali que o poeta se “reúne”; é ali que maturou a sua concepção do poema, bem como a sua visão do mundo. A sua poesia é ainda algo “encravado” ou incrustado como que na pedra... É à custa de ritmo (e pura intuição) que ele compreende o seu próprio universo. Como um cego, que caminhasse tateando, sem ver.. . Assim êle se movimenta. E temos de acompanhá-lo. Fazer fé na sua dicção, deixando-nos guiar pelas suas imagens.

Quem é Sélesis? É um pássaro. E êle dedica o livro que tem êsse título , inclusive aos “companheiros de Sélesis morto”. No entanto, pelo “Poema de Sélesis”, que abre o livro, se vê que Sélesis é um cão. Um cão morto.

Êste primeiro livro não contém grandes revelações. Não passa de uma promessa. É no Livro de Silbion que o poeta levanta as asas.

“Qual o destino do homem?” — pergunta-se o poeta, ao final de Sélesis (é o último verso do livro). E assim havia procurado definir o homem:

Do ar não nascem pássaros E o homem é uma angústia de Deus (p. 15).

E o homem é triste Sélesis E nós somos gestos Esquecidos de Deus (p. 18).

É o livro da indefinição, êste. Ponto de partida. Aspirações vagas, anseio de morte, “gestos sem destino” (p. 16). Sonha com a partida:

Partir! Sempre partir! e desvendar A luz que no futuro se condensa Eu hei de descobrir a vida imensa Num bosque desfraldado sobre o Mar (p. 34).

Pensa ter penetrado a Noite. E vê no seu destino “um pássaro que passa” (P- 53).

Se eu não fôra o que sou Seria mar

Todo cheio de velas e de adeuses (p. 54).

Põe como epígrafe do Livro de Silbion 2 os versos de Saint-John Perse: “Et c’est l’heure, ô Poète, de décliner / ton nom, ta naissance et ta race”. O livro é dividido em dez cantos, dos quais três êle denomina de “Livros” (da Terra e dos Homens, o 2.°, do Sol, o 3.°, do Tempo, o 4.°), após as Invocações iniciais. Os três últimos, chama de "Construção” (do Soi, da Noite, da Aurora). No meio, ficam “Ode”, “Invenção no caos” e “Homem no caos”.

“O homem nasceu do vento” (p. 23). Dá prioridade ao vento   . “O tempo nasceu do homem” (ibid.). Em segundo lugar vem o homem.
E com o homem chega o Tempo. No entanto: “ O tempo formou-se pedra / Na eternidade de pedra”. E o destino do homem é de pedra.

A eternidade é de pedra. Este é um dado fundamental da visão do mundo de Carlos Nejar. Tudo virou pedra, petrificou-se. No “Livro da Terra e dos Homens”, 2.° canto do Livro de Silbion — “tudo o que nasce é de pedra” (p. 22). Melhor esclarecendo: “O homem nasceu do vento / Mas sepultou-se na pedra” (p. 23).

No Livro de Silbion, o homem se procura nos seus próprios caminhos. Pois —

 

Perdemos o roteiro de ser homem (p. 35).

 

Somos exilados na terra. “Julgamo-nos libertos, mas não somos.” “Somos nada” e “Ninguém nos elucida para o mundo” (p. 34).

É uma ampla meditação sobre o humano, e o destino do homem. “Homem de todos os dias / Refém de todos os desejos” (p. 36).

"A existência das coisas” precede tudo o mais: "Não procede do vento” (como o homem) / “Nem dos astros” (p. 37). Por isso —

 

As coisas

Nos prendem junto a elas

Nos contemplam

Nos amam

Mas nos prendem

E ficamos

Calados

Na amurada

Vendo as coisas

Pensarem

No que somos (p. 33).

 

Pelo índice do Livro de Silbion, já se vê que o poeta conclui com três “Construções”: do Sol, da Noite e da Aurora. Ou seja: da Aurora que nasce — ou nascerá; da Noite que desce; e do Sol que ilumina a Terra. Superando assim o Caos (a que dedica os dois cantos anteriores: “Invenção no caos” e “Homem no caos”). A “Construção” (tríplice), portanto, visa “organizar” o Caos.

No início, para Nejar, “foram os ventos”. “E não havia mensagem” (p. 45). Os ventos varriam o caos — era o que pairava sobre a face dos abismos.

Tudo isso decorre da prioridade que ele estabelece para a "existência das coisas”. As coisas existentes não foram criadas, não advieram. Há no universo, para Nejar, uma prioridade ontológica. No universo material, tal como existe; não existe sequer uma "alma do mundo” (como em Platão). É por isso, finalmente, que o universo inteiro “comanda” a nossa evolução. Como que preforma os nossos passos. Não há lugar, na primeira fase da sua poesia, para a liberdade criadora de mundos e decisões significativas na ordem cósmica, como na ordem moral.

Donde a conclusão, expressa no Sexto Canto (“Invenção no Caos”): “Deus é Deus / E os homens somos nós / Dentro de Deus”. Como se dissesse: Deus não pode conosco, e nós outros, podemos ainda menos... Daí também a conclusão intercalada, e que se expressa nesses dois versos antitéticos: “Deus não se inventa se encontra” (p. 71). “Deus não se encontra se perde” (p. 72). Quer dizer: perde-se Deus, ao encontrálo 4 (ou sem que se precise encontrá-lo) .

Esta “situação” da poesia de Carlos Nejar está expressa na primeira estrofe do Nono Canto: “Construção da Noite”:

 

Vou ao encontro dos prados e das flores

Aos homens não encontro

Vou ao encontro dos montes e das tardes

Aos homens não encontro

Vou ao encontro dos ventos e dos rios

Aos homens não encontro

Vou ao encontro do amor
         E não encontro
(p. 103).

 

Aos homens ele não encontra. No mesmo sentido, no Canto Oitavo, proclamava: “ó geração da terra / meu reino não é desta terra” (p. 96).

 

 

II

Há dois "livros do Tempo”: o do Livro de Silbion, Canto Quarto, e o próprio, que é o seu terceiro livro publicado.5

No princípio não havia “mensagem”, já vimos. “Tudo era imóvel.”

 

Subitamente o caos tornou-se um pássaro gigante

         De plumas líquidas

E os demônios que vagavam na névoa estremeceram de amor

         Porque era visível aos olhos a nova aliança das águas.

 

Houve, então, a separação das águas...

 

O tempo se constrói. O tempo não dorme. Não descansa.

 

não descansa o tempo

         pêndulo insaciado

         que suspende as águas

         de um e de outro lado (p. 53).

 

Mas o tempo se transforma, qual esfinge de mil faces. O tempo “faz-se amora” (p. 57). Transforma-se com as estações do ano.

Sai o sol. O sol que “era como um moinho / moendo o dia dentro” (p. 17). A manhã se eleva, sobre a pedra. O tempo nasce do “úmido da pedra”, que o sol beijou. . .

 

O sol mordeu a pedra mais silente

         como pão ou lágrima se acende

                   a pedra

         e o sol estende

         o corpo nu

         ao úmido da pedra

         e deste beijo:

         o tempo feto

sob o escuro tempo (p. 17).

 

O tempo nasce do tempo (escuro). Nasce do tempo motriz:

 

Os homens não sabiam

         daquele ser espesso

         que era como um moinho

         gira girando lento

 

era como um moinho

         moendo o dia dentro

         quando o tempo e o tempo

         se confundiam

         (rio que se condensa

          todo na represa).

 

O tempo brotava da “água materna" (p. 19). É a água que gera a semente. E o tempo foi gerado na noite. Foi o sol que gerou — dentro da noite, e o “seu rebanho de ventos” (p. 23).

O tempo é o fruto gestado; o tempo resultou. O tempo nasceu. E o tempo se biparte. O tempo é eterno.

 

0 tempo permanece

enquanto nós passamos (p. 31).

o tempo é mais durável

que as coisas que o compõem (p. 37).

 

Há o “tempo denso”, em cujo seio Deus se move (p. 41). É êste o “dentro”, a que o poeta tanto se refere, significativamente (pp. 17, 57, 63, 29, 27, 23, 41).

O tempo é gerador. O tempo é animal. E ao mesmo tempo se constrói, como vimos.

Mas o tempo se desprende do seio materno... Torna-se outro tempo, um tempo próprio, e inconformado.

 

                   já não te pertenço
                            fogo inconsumido

 

                        ——————

 

 já não te pertenço
 tempo absorvido
 pelo avesso sempre
 já não te pertenço

 

                                      carne florescida
                                      dentro de teu leite
                                      já não te pertenço

 

                   tem outro liame
                   músculo semente
                   já não te pertenço

 

                                                carne amanhecida

 expulsa do peito 
          já não te pertenço

 

                             tem outro velame
                                      outro tecimento
                                      já não te pertenço


                                      mas pertenço ao tempo

                             filho de teu ventre
                                     já não te pertenço
(pp. 67 e 69).

 

O tempo é um tempo nascido. Deixou de ser eterno. Brotou do nada, do caos. Mas “o tempo não retorna / ao moinho do tempo / a não ser junto ao homem / filho do mesmo leito” (p. 105). O tempo desvia o curso do tempo: “o tempo não retorna / ao tempo novamente” (p. 107). O tempo se faz homem — e se torna, assim, invencível:

 

pedra a pedra

o tempo se constrói

e se avoluma no sangue (p. 107).

 

É um ser gestado pelo próprio homem. Deixa de ser “cíclico”, para transformar-se em “tempo histórico”. É o que o poeta irá descobrir em seu quarto livro, O Campeador e o Vento.

O homem, que nasce do tempo (com o tempo), também gera o tempo. Faz nascer outros sêres (da mulher amada). Na medida em que rem consciência disso, consegue repousar; como que se insere na criação que realiza, de outros sêres O tempo nêle penetra, e dêle nasce. É assim que o homem constrói o tempo, e o tempo se torna familiar ao homem. Como que se concretiza nêle. Tornando o homem invencível (na medida em que “descortinou” o tempo, dentro dêle, fora dêle).

O tempo, que apropriamos, “morreu”, quando morremos. Outro tempo passará a haver; outros tempos; e assim indefinidamente. Pelos tempos dos tempos que virão. E assim se explicita o fenômeno do que é eterno e, no entanto, vai morrendo-, vai morrendo e renascendo nos novos seres. É isto que explica a irreversibilidade do tempo (que nunca volta atrás). O tempo é o consumador de tôdas as coisas. Mas, sendo o mesmo, se renova sem cessar.

É o homem — e somente o homem — quem domestica o Tempo. Torna-o um seu igual. E assim o Tempo cumpre o seu ciclo, que é eterno. E o homem o compreende, porque está dentro dêle, e o recria ao nascer. O homem também refaz o ciclo da vida...

O Campeador e o Vento 6  representa a reformulação do Tempo no plano da História. Passa o poeta a elaborá-lo em função de dois agentes primordiais da Cultura: o Lavrador e o Cavaleiro. O primeiro, prêso à terra, não se liberta da servidão do tempo, que, mítico, ou cíclico, se repete com as estações do ano. Sòmente o Campeador se desliga da gleba — e produz o tempo histórico. Nôvo marco — fundamental — é criado na história do homem. O tempo, desde então, é criação humana. O ho¬mem domina a Natureza, impõe-se a ela. Transforma o mundo à sua imagem e semelhança. É essa a perspectiva em que deve ser considerado o último livro de Nejar. Vejam-se estes versos — tão importantes que o poeta os transcreve na capa; pois êle tem consciência do que faz, como sucede com os poetas de vôo largo:

a ceifa o fastio o tôrvo o que se some na vida o campeador é outra medida.

O Campeador é, afinal, o herói da cultura humana, o protagonista da História. Daí que uma nova fase, na evolução da poesia de Carlos Nejar, se inaugure com êsse livro — que é, realmente, apenas um nôvo começo.

Mostra o poeta, nesse livro, “de como a terra e o homem se unem’’ (no “ofício de lavrador’’). Mostra a faina do lavrador, a sua casa e a sua morte . De como êle se transforma, morrendo, no Campeador. “De como cavalo e dono se encontram.” A sagração do cavaleiro. A monta- dura, e o andamento do Campeador. E finalmente, mostra o herói da Ci¬vilização “com as rédeas do tempo ”. Aí está todo um programa, que o poeta realiza nos dez cantos do poema.

“O leão está em ti / e não nas coisas ' (pp. 57 e 59) — marca a introdução do tema do Campeador. Também nas “Três metamorfoses” do Zaratustra de Nietzsche, o camelo se transforma em leão, e quebra as tábuas da lei. . . Corresponde ao momento da “negação”, sem o qual o espírito não adquire autonomia, e o homem não encorpa em sua própria humanidade. Exatamente êsse o significado d'0 Campeador e o Vento na obra de Carlos Nejar. É a verdade da luta que o poeta descobre.

 

O campeador é o que não morre

         no homem,

é a resina de sua fibra,

         fornalha acesa e crescida

         na madureza do lenho (p. 92).

 

O campeador é o que nasce

         do lavrador e sua morte

         é o que vence, e reconhece

          seu irmão na obscura face (p. 93).

 

O Campeador é no homem

         força maior do que ele.

É o que lhe sobra sem dono

         e não o amarra ao potreiro;

         o Campeador é no homem

         o que fica além do termo (p. 94).

 

"O Campeador é no homem / força maior do que ele”. É o que, em nós, sacode o jugo.

Resumindo: nos dois primeiros livros temos a perspectiva mítica, estelar — onde o homem não cabe. Depois, vem a meditação sobre o tempo — em que o destino do homem já é interrogado mais de cerca. Finalmente, com O Campeador e o Vento o poeta se encontra no Campeador, protagonista da História. Esta, a evolução da obra de Carlos Nejar, que está em vias de situar-se entre os pontos altos da poesia brasileira, em nossa época.

 

 

 

1 Carlos Nejar, Sélesis, P. Alegre, 1960
2  Carlos Nejar. Livros de Silbion. Ed. Dif. De Cultura. P. Alegre, 1963.
3 O que sobra da dispersão do Vento (o vento dispersa tudo em sua volta), na obra de CN? Há uma linguagem cifrada, nesse poeta difícil. Exprime-se em vocábulos-chave, como “vento”, “tempo”, “pedra”...

4. Daí a significação da “pedra”, na poesia de Nejar. A pedra incor¬pora tudo, em sua obra. Pedra, água. Esta, tocando aquela. Penetrando-a. Transformando-a. “O que a pedra guarda no côvo / é puído pelas águas” (OV, p. 27).

5.  Carlos Nejar, Livro do Tempo, Ed. Tip. Champagnat, P. Alegre, 1965.
6. Carlos Nejar. O Campeador e o Vento. Liv. Sulina Editora, 1966. E é o Livro do Tempo  que continua, de certo modo, ne O Campeador e o Vento.

7        O que é o “vento”, na poesia de Nejar? Donde tira êle a sua “fôrça”? — Da terra. Donde êle o desenterra:

É duro teu ofício
         de esposar a terra, —

diz êle ao lavrador; e continua:

desenterrar o Vento
         e levedar com ela
(CV, p. 15).

O vento, ai, depende do homem; não é simplesmente dado, não verii de íora. É duro o oficio do lavra-dor, que é de “pastor do Vento”.

8        O poeta antevê a época em que os ventos, em vez de dispersão, se¬jam “caminhos”. É êste o sentido profundo d’0 Campeador e o Vento. “Quando os ventos forem caminhos”, o homem reencontrado construirá a sua casa, a sua cidade, o seu mundo. Isto é obra do Campeador, para Nejar — do “Campeador com as rédeas do tempo”.

 

 

 

Página publicada em fevereiro de 2018

 

 

 
 
 
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