Home
Sobre Antonio Miranda
Currículo Lattes
Grupo Renovación
Cuatro Tablas
Terra Brasilis
Em Destaque
Textos en Español
Xulio Formoso
Livro de Visitas
Colaboradores
Links Temáticos
Indique esta página
Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

 

A ARTE DO ESPELHO

              

                                                                       José Fernandes

 

 

Resumo: A literatura sempre se nos apresentou com faces múltiplas, causando-nos, às vezes, uma sensação que os italianos definem como stupore. Stupore diante do belo e perante o inusitado, uma vez que, quando pensamos que as formas e as ideais estéticos estão esgotadas, que é difícil encontrarem-se novidades construturais, surge uma obra de arte inteiramente marcada pelo novo. É evidente que ele não se desprende do nada, mas centrado sobre o passado, sobre componentes culturais cristalizados pelo tempo. É na cultura que o ficcionista, ou o poeta, extrai as estruturas e as conformações do belo. Estas reflexões se quadram a Memórias de Sefarad, recriação de canções sefarditas realizadas por Leonor Scliar-Cabral, costuradas a partir de pesquisas das tradições judias, que abarcam toda a vida do povo, desde o nascimento à morte. Além de rituais e de outros costumes, os poemas que compõem o livro se erigem sobre o forte simbolismo das letras do alfabeto hebraico, a partir de suas conformações anteriores e posteriores ao aramaico. A composição dos poemas opera o que se pode chamar a estética do espelho, à medida que cada texto se erige sobre o simbolismo de uma letra ou de sua ausência, como se ela constituísse a própria essência da cultura judaica. Trata-se de um processo singular de composição do poético, que confere ao livro, verdadeiramente, a sensação de se estar diante do prodígio, só possível na semiosfera do discurso artístico.

 

Palavras-chave: 1. Simbolismo; 2. mitos; 3. canções; 4. ritos e rituais judaicos.

 

 

 

INTRODUÇÃO+++

  

A literatura sempre se nos apresentou com faces múltiplas, causando-nos, às vezes, uma sensação que os italianos definem co­mo stupore. Stupore diante do belo e perante o inusitado, uma vez que, quan­do pensamos que as formas e as idéias estão esgota­das, que é difícil encontrarem-se novidades construturais, surge uma obra de arte inteiramente marcada pelo novo. É eviden­te que ele não se desprende do nada, mas centrado sobre o passado, sobre componen­tes culturais cristalizados pelo tempo. É na cultura que o fic­cio­nista, ou o poeta, extrai as estruturas e as conformações do belo. Estas reflexões se quadram a Memórias de Sefa­rad, recriação de canções sefarditas realizadas por Leonor Scliar-Cabral, costu­radas a partir de pesquisas das tradições judias.

 

O texto, qualquer que seja ele, constrói-se a partir de elementos cristalizados na e pela cultura. Quando se trata de discurso artístico, com raras exceções, ele se abeberara no folclore, na literatura oral, como fizera Homero, no início, ao compor a Ilíada e a Odisséia, ou Guimarães Rosa, ao elaborar o Grande sertão: veredas, em que se encontram até canções que exercem função mântrica, como a Canção de Siruiz. Hoje, porém, nota-se uma tendência a menosprezar a cultura popular e até a chamar determinados escritores de caipiras, como se atualizar as raízes de um povo fosse um ato hediondo. Evidentemente, estamos diante de um absurdo, ouvido a pessoas que desconhecem as fontes em que a literatura sorve a sua seiva, à medida que escritores e críticos sensatos jamais deixam de reverenciar as formas simples e criar, tendo-as como fonte primeira da arte literária. É consoante esta perspectiva que nos inseriremos na dimensão do sublime, criado por Leonor Scliar-Cabral em Memórias de Sefarad, poemas elaborados a partir das formas simples e das formas cultas da cultura hebraica.

 

               Os poemas, a despeito de se comporem em forma de abecê, à medida que cada texto é antecedido por uma letra do alfabeto he­braico, à semelhança do que ocorre no Salmo 118, reservam-nos, no en­tanto, alguns enigmas. Os enigmas provêm não tanto do fato de o primeiro verso iniciar com uma letra, mas de o poema cons­ti­tuir uma espécie de imagem que se projeta da face oculta de um espelho, representado pela seqüência alfabética. Além disso, como cada letra ocu­pa toda uma página, passa ela a exercer uma função semelhante à de um poema visual em que os símbolos, situados na semiosfera do poético, se transformam em signos verbais na face visível do espelho. No poe­ma visual, a letra, seguindo as tradições hieroglífica e hebrai­ca, pode significar mais que as palavras.

 

               Além disso, consoante com a cultura hebraica, as letras são dotadas de significados que, às vezes, assumem conotações pró­prias do sagrado. Como tal, elas possuem os mesmos atributos das palavras mágicas, não porque materializam o objeto do desejo no momento da pronúncia, mas porque significam além de suas dimen­sões de letras. Todas elas, muito mais que nos abecês que se se­guiram ao Salmo 118, são utilizadas sob o signo da cabala, que visa, antes de tudo, a assegurar a supremacia da religião e cultura que lhe é paralela, como veremos na análise dos poemas.

 

 

               1 - A PRESENÇA

 

               Memórias de Sefarad, além de recriar as canções sefarádi­cas, obedece, em seu plano construtural, à presença dos judeus na Península Ibérica e à presença de Iavé, subjacente nos atos reli­giosos, a sustentar-lhes os passos. É por isso que a primeira parte, momento de estar e de ser do povo, é também o momento da tra­dição, daí o re­flexo, quase sempre, do simbólico no imaginário poético. Assim, o pri­meiro texto, intitulado Kidushin*, cons­trói-se sobre o ritual do casamento, como o próprio vocábulo o cer­ti­fica, significa consagração. Na página an­te­rior, par, temos apenas álefe, À, primeira letra do alfabeto he­brai­co, dominando a página de cima a abaixo e projetando-se pelo espaço em branco e sobre o poema, como se a imagem saísse do espelho, na letra K, sua correspondente vi­sual, não gráfica, uma vez que a poetisa prefe­riu, para represen­tá-la com a letra H, de Himeneu. Quem desconhece o simbo­lismo e o signifi­cado inerentes a cada um dos signos, não compreenderá o porquê da letra, seguida do espaço em branco. Ora, o álefe perten­ce à mesma raiz de alleph, Pl), que significa ensinar, de onde provém o subs­tanti­vo alluphpríncipe, mestre, esposo. O que vemos no poema, senão a fala da virgem, em sua entrega ao espo­so? Himeneu ao festim de nossa aliança/eu te aguardava na sala reservada./Tímida e an­sio­sa sob o véu sagrado,­/eu não ousava levantar as pálpebras.­/O momento do desvelo é chegado/e nas mãos teu tremor ao revelar-me/é transfe­rido ao talit franjado.

 

               Ao encerrar as semias de esposo, outras interpretações se nos tornam possíveis, como a própria relação do álefe, em sua configu­ração ideogrâmica, com o esposo, no sentido de homem-esposo do Gênese, representado pela cabeça. Sob esta ótica, a esposa passa a ser, alegoricamente, o povo israelita, em sua relação direta com o Criador. Reforça este enfo­que o fato de o álefe conjugar-se aos simbolismos de fecun­dação, clara, também, na simbologia do pé direito rompendo a taça que, outra coisa não é, senão a conjunção do masculino com o feminino. Neste sentido, ainda, a esposa se revela como configu­ração da humanidade, ou do criado, em sua relação de interdependência com o Criador, também encerrada nas profundezas dos símbolos de álefe, sobretudo se atentarmos que ele se liga à semia de ca­lor vital, bem clara no contato das mãos do esposo com o corpo da virgem.

               O poema, assim interpretado, constitui-se de duas partes distintas: uma, visível e inteligível, percebida na interação verbal, e outra, invisível, que percorre o espaço em branco da fo­lha e se acopla ao texto que se lhe adere:                                                                           

 

 

                                                                                                                      )

                                           Kidushin

 

 

                                           Himeneu ao festim de nossa aliança,

                                           eu te aguardava na sala reservada.

                                           Tímida e ansiosa sob o véu sagrado,

                                           eu não ousava levantar as pálpebras.

                                           O momento do desvelo é chegado

                                           e nas mãos teu tremor ao revelar-me

                                           é transferido ao talit franjado.

                                           Rumo ao dossel, na tenda já me aguardas,

                                           por cedros e ciprestes sustentado.

                                           Salmos nupciais em bênçãos nos embalam

                                           e o vinho do desejo nos embriaga.

                                           Com o despojado anel tu me consagras

                                           pela lei de Israel e a fé mosaica

                                           e com a memória inscrita na palavra.

                                           As bênçãos sete vezes recebemos

                                           e que teu pé direito rompa a taça

                                           lembrando a dor do Templo destroçado.

 

O invisível, não sig­ni­fica ausência de discurso, mas uma mensa­gem que se desprende da tradição e da língua hebraicas na evolu­ção de cada letra a partir dos hieróglifos egípcios. Assim, a relação da letra do início do verso, H, de Himeneu, com o álefe, não constitui apenas uma seqüência, como ocorre nos abecês, mas um jogo profundo, à medida que os significados e os simbolis­mos de álefe se imbricam à forma e ao conteúdo de Himeneu, uma vez que esposa, álefe, e casamento, Himeneu, se completam, por­quanto letra e palavra, antes de significarem, materializam e substantivam o Kidushin.

 

               Nossa postura hermenêutica se torna mais clara, quando ve­ri­ficamos que o procedimento perpassa, com maior ou menor inten­sidade, quase todos os poemas. Assim, o segundo poema, Meu avô, tem como correspondente a letra beth, p. Todo o discurso se con­ver­te numa espécie de condensação semiosférica da letra, à medida que abrange o lingüístico, o semântico e o simbólico . Todavia, ao lermos o poema, temos a impressão de que a le­tra beth nada tem a ver com seu conteúdo. Entanto, veremos, ao final, que a refe­rência à casa constitui a reificação sêmica da letra, ou o seu re­fle­xo, como se o conceito se despren­desse do signo, porquanto ela se origina da palavra bayit, hyp, que signi­fica casa Que o pro­fe­ta à mesa sente/e abram as portas desta casa, agora transforma­da em templo! 

 

               Estabelecendo correlações com o poema anterior, à medida que ele representa a relação do povo sefardita com Deus, este texto, ao colocar-se sob o signo de beth, consubstancia esta cor­respondência, pois representa, também, criação. Não é sem motivo que a fala do profeta com pão ázimo, do jugo vos liber­ta­rei, o primogênito será poupado, então vos libertarei, meu braço mostrará o caminho, da dor vos redimirei se torna a palavra do Cria­dor. Esta inte­ração se robuste­ce, quando verifica­mos que a esposa do poema anterior se confunde com a criação, à proporção que, na tradição hebraica, é ela chamada de a Virgem de Israel.

 

               Cristalizando a trajetória cultural e religiosa do povo ju­deu, o terceiro poema, correspondente à letra gimel, g, centra-se sobre um dos mais significativos acontecimentos da tradição ju­dia: o ano novo. O poema, Tu Bishevat, ano novo dos frutos, não se prende à poética do festejo; antes, explora as semias de reno­va­ção e de retorno. Mais; constitui uma alegoria da peregri­nação, como se o povo sempre estivesse em viagem e, em decorrência, em travessia. Estes elementos, expressos, em parte, por signos verbais, como o comprova o verbo, colocado na primeira pessoa do plural, do futuro do presente, vol­taremos, permitem-nos ler a peregrinatio em toda a sua extensão mítica, como se o ser lírico estivesse sempre em rito e ritual de nasa’, CMN, viajar. Entanto, esta semia se materializa, não pela palavra, mas pelo símbolo, uma vez que, na cultura he­braica, é ele mais forte que o logos, o hp,, no sentido de verbo divino. Deste modo, quan­do lemos gimel, lmg,, como inicial de gamel, camelo, a signifi­cação de reservas para uma longa viagem, travessia, instala-se, como se hou­vesse se desprendido do ideograma primitivo, camelo, que dera o­ri­gem à letra:

 

                             Grãos granados de trigo e de cevada

                             fumegam nas travessas abençoadas.

                             Figos e uvas, azeitonas, tâmaras,

                             romãs recém-colhidas das ramagens

                             que na areia lavada vicejam

                             formam guirlandas ao longo da toalha.

 

                             Fiquem de pé, plantadas as figueiras

                             e dos platôs, descendo, as parreiras

                             que em provisória paz as mãos guerreiras

                             teimaram em renascê-las dos incêndios.

                             Mesmo curvados sob o cativeiro

                             para colher teus frutos, voltaremos.

 

Assim compreendido, todos os componentes alimen­tí­cios que perfazem o ritual se inserem na preparação para a lon­ga viagem que será efetuada, sem se passar fome nem sede. Daí o acoplamento de gimel, g, voltado para um lado, com o G, voltado para o outro, como que conformando uma cai­xa em que se guardam água e grãos. Esta interpretação se torna evidente, ao verificarmos que a letra gimel, em sua conformação hieroglífica, assume a configuração de pilão, que, como um cadinho, contem alimentos modificados quanto à forma, sem, no entanto, perderem a substância, porque ainda inseridos em um ritual, tornando-se altamente simbólicos.    

          

               Como o substantivo Sefarad deixa entrever nome que se dava à Pe­nín­sula Ibérica, por onde os sefarditas peregrinaram até a diás­po­ra de 1492 , o poema seguinte, Toledo, Cidade do Consolo, vai con­firmar a noção de peregrina­tio, sugerida pelo anterior, uma vez que Memórias de Sefarad encerra, em termos poéticos, a história e os costumes judeus desenvolvidos e praticados à época. Se no tex­to verbal sorvemos o sentido judaico das tradições, expresso até nas construções, no visual, que encerra as verdades simbólicas, verificamos a inter-relação operada entre eles. A letra delet, , tendo como origem a palavra delet, hld,, porta, parece não estabelecer nenhuma relação com o texto. Todavia, como nos assevera Anick de Souzenelle (1987, 50), A porta, como o colo do útero, implica parada prévia na matriz onde aquele que deve passar amadurece a justeza de sua dimensão. Ora, a estada do povo judeu na Península afigura-se, des­te modo, como uma parada, um tempo de amadurecimento. A porta, assim entendida, não se apresenta apenas como passagem de um es­pa­ço físico para outro; mas, sobre­tudo, como consciência da ne­ces­si­da­de de renascimento, de ajustamen­to a uma ordem que ultra­passa o meramente humano. Daí os simbo­lismos próprios de delet serem con­firmados pelo número quatro, seu correspondente, como o expõe Aniick de Souzenelle (1987, 187), O número 4 é ­sím­bo­lo de parada, de prova, de prisão; e a palavra que o ex­prime parece, ao mesmo tempo, nos dizer que ele é uma porta, daí uma abertura, uma liberação desta prisão.

 

               A inter-relação das construções com a tradição, notadamente a religio­sa, é materializada não apenas nas faces visível e invi­sí­vel do texto; mas também na construtura da cidade poetiza­da. O registro dos números trinta e dois – plano de diversas formas de criaturas e a consciência binária segunda a ação do logos – e trinta e seis – organização do criado –, em referência à quantidade de pilastras e de degraus, demonstra a clara inten­ção de a cidade se construir segundo as normas que regem as rela­ções entre Criador e criatura. Além disso, estabelece interação direta entre o individual, Toledo, representada pelo número seis, e o universo, a fim de que se opere entre eles uma solidariedade cósmica, desprendida do número trinta.

 

               A convergência entre Criador e criatura atinge o cerne da cultura judia, como verificamos no poema seguinte, Sucot, em que a nação se propaga pelos confins de terra, porque oriunda e co­man­dada pelo sopro do Criador. O sopro, expressão genuína da vi­da, não advém somente de seu roçar na rosa-dos-ventos; antes, ad­vém de simbolismos que se des­prendem da letra het, h, a própria matéria do sim­bólico, pois a colheita, móbil da festa dos Tabernáculos, se representa a morte da planta, conserva a vida na semente e em que será por ela alimentado:

              

                             Hadás tramadas dos galhos espessos,

                             cidras maduras de estames perfeitos

                             e franjas esmeraldas das palmeiras

                             e a renda molhada dos salgueiros

                             isolem a mandala deste templo.

 

Constata­mos, deste modo, que os poemas, a­pa­rentemente in­dependen­tes, são criados mediante uma forte coesão signótica e semântica, como se estivessem dentro de uma mandala, formada pelo próprio alfabeto, que verte e reverte sobre si mesmo, uma vez que a última letra é fim e começo, porque signo e selo do povo judeu. Não sem razão, o Sucot representa também residência temporária das famílias no deserto, simbolizando a viagem permanente do povo.

 

               A solidariedade, construtural e ideológica, rea­li­za-se, também, entre um poema e outro, à medida que o poema seguinte, Pei­xe dourado, ao utilizar os simbolismos da água, não somente se interliga às se­mias de het, como se lhe adere, uma vez que reflete a simbologia da letra waw, w, que tem como significado o conetivo coordenativo e. A coordenação, entanto, não se opera ape­nas entre os poemas, ocorre também entre o povo e o povo e entre o povo e o Criador, como se as esperanças de ser e de estar estivessem sem­pre se renovando:

 

Vagas pelo aquário o teu silêncio aprisionado,

príncipe carmesim, por uma bruxa encantado.

Virá uma princesa e o milagre de seu sal

transbordará as águas, transformando-as em mar.

Mãos dadas, mergulhando, na maré carregados,

submergirão para sempre, escafandros de metal.

 

O caráter simbólico desse poema inteira o onírico e, ao mesmo tempo, a fecundidade e o permanente, através do elemento água desprendido do peixe, que se associa e, no caso materializa a restauração cíclica, uma vez que a existência judia se constitui de eterno ir-e-vir. Assim, a transformação do casal em escafandros de metal revela à própria matéria de ser-não ser-ser, substantivada no simbolismo do permanente através do metal. Deste modo, a submersão constitui um processo necessário à emersão, ao renascimento, confirmado pelo caráter da imagem marinha, representação do estar em útero e, portanto, em potência para a renovação inerente ao princípio vital. 

               Se, em nível lingüístico, o sema de waw liga uma palavra ou uma frase a outra, na constru­tura do discurso, ele coliga verdades e costumes que avançam e re­cuam no tempo. Assim, quando fala dos costumes no poema Minha avó, não somente cristaliza o ritual da Pessach, xsape, como, por meio da letra zayn, z, sugere que a páscoa seja uma es­pé­cie de arma por que se passa da morte, enunciada pelo nú­mero sete, correspondente a le­tra zayn, para a vida, como deve ser interpreta­da a Pessach.

 

               O imaginário, neste caso, permite que o simbólico não se refira a objetos determinados, mas se interconecte a aspectos relativos à cultura e às doutrinas cabalísticas. É sintomático, sob este prisma, o poema Girona que, ao falar de Harab ben Ishaq cabalista da escola de Girona utiliza símbolos que condigam com os mistérios da cabala. As consagradas lâmpadas com que Harab se confunde constituem uma imagem da sabedoria do estudioso, bem como do processo de que se servira para transmiti-la: palavras escuras sempre ilumina­das. Escuras, porque colocadas sob o signo de arco e arcanos, como é peculiar à Cabala. Estes mistérios são confirmados, no sentido genuíno de confirmatio, pelos simbolismos de het, h, à medida que, ao se inscreverem nos arcanos, fecham-se para os não iniciados, uma vez que het, tyh , significa fechado:

 

               Harab ben Ishaq e as consagradas lâmpadas,

palavras escuras sempre iluminadas.

Vozes da Provença, presságios nas calls,

vinte-e-duas letras, vinte-e-dois degraus.

Intrincado dédalo:de arcos e arcanos

e a estrela amarela e os vermelhos panos.

 

 O signo h, encimando a folha em branco, é o próprio mistério, o enigma que caracteriza a doutrina caba­lística. Até mesmo a composição do vocábulo tyh, ao imprensar o iode entre o t e h, esconde as po­tên­cias da Cabala, entrevistas pela letra iode, sobretudo se con­siderarmos que o taw significa marca, signo. O het, desde modo, afigura-se como um signo encobrindo outro, como um palimpsesto; daí os arcanos, os mistérios da doutrina estudada por Harab ben Ishaq.

 

               O consórcio do imaginário com o poético atinge todas as di­mensões do simbólico, à proporção que até mesmo os simbolismos do corpo se convertem em matéria de poesia e, portanto, de ambigüi­dades, como no poema Shavuot* em Granada. A festa da colheita, antes de configurar a posse dos frutos da terra, representa a segurança do homem, simbolizada pelos pés, e a continuidade da vida, entrevis­ta pela fecundidade que se desprende das romãs e das flores de la­ranjeira. Os dois símbolos da linguagem decifrada se encontram na cifrada, porquanto a letra tet, +, é inicial da palavra ty+, que significa serpente, e teve, como ideograma antigo, uma serpen­te que morde a própria cauda. Ora, este animal, além de se corre­lacionar à evolução, uma vez que representa a nona letra, último número simples, interliga-se à semântica de auto-fecundação, simbo­lismo ainda mais forte que os entrevistos na fruta e na flor. Co­mo desenho hieroglífico, sua conformação se prende aos semas de escudo, de proteção, conjugando-se, assim, aos simbolismos de pé. Deste modo, a colheita, ou pentecostes, para os cristãos, inscre­ve-se como fim de um ciclo e início de outro, a começar com a le­tra iode.

 

               O iode presente no poema seguinte, A solteirona, por per­tencer à mesma raiz que yad, dwy, que significa mão, cifra todo o poema, à medida que ela está ligada ao conhecimento, por intermé­dio do vocábulo yada, dy, que quer dizer eu amo. Ora, a reite­ração quaternária da fala da solteirona, "Mares profundos e mon­ta­nhas altas/levem-me aonde o meu amor", além de estabelecer a ambigüida­de peculiar ao número quatro, traduz exatamente o senti­do profundo do iode. Não somente a semia de yada se decifra no discurso verbal, pois o sentido primeiro, mão, oriundo do hieró­glifo, também se conjuga à simbologia geral, uma vez que, sendo a mão entendida, como nos atesta Anick de Souzenelle (1987, 221), um prolongamento do coração, encerra ela tam­bém os semas de amor, tão decantado pela solteirona.

 

               Podemos ver a solteirona também como uma espécie de ser con­sagrado à divindade, notadamente se entendermos a conjunção das forças encerradas no simbolismo de dedo com as energias divi­nas emanadas do iode, primeira letra do tetragrama hwhy, Iavé. Se a solteirona mobiliza as forças por meio da canção e as mantém em segredo pela potência impressa ao dedo que mantém sobre os basti­dores, do mesmo modo o iode, ao encerrar as energias divinas, desde as origens, se lhe conecta, à proporção que a solteirona figura como aquele ser que conserva o amor ainda intacto dentro de si. Este poema, sendo o décimo, fecha-se ao primeiro, não somente por causa da conjugação numérica, retorno à unidade; mas, sobretudo, pelo fato de a sol­teirona se correlacionar com a virgem que se casa. Ambas estão em potencialidade para o amor e para expandir as energias da divin­dade, consoante com a direta interação exis­tente entre Criador e criatura, ou Israel e Iavé.

 

               Como é característico do discurso poético, às vezes as cor­respondências semânticas entre o texto e a letra se tornam flui­das, como verificamos em Romances de minha avó, em que o entendimento da le­tra Kaph, k, significando cavidade côncava, palma da mão, só pa­re­ce conjugar-se ao discurso, se correla­cionado ao poe­ma anterior, uma vez que o tema, amor, lhes é comum. É verdade que, no primeiro, temos um amor represado, em vias de explosão; no se­gundo, o amor sido e sendo, à proporção que, tanto na figura da avó, quanto na da princesa, é ele a materialização dos germes e das energias divina e humana concentradas no ser do homem. De qualquer maneira, há o concurso dos signos e dos símbolos, nota­da­mente ao considerarmos que o Kaph se caracteriza, segundo Ska­ria­tine (1984, 92), por encerrar idéias abstratas.

 

               Além disso, a letra Kaph, sendo cavidade côncava, refere-se a recipien­te, que pode tanto ser o cadinho das energias, inicia­das com o iode, letra que inicia a unidade complexa, e confirma­das pelo Kaph, como o amor, representado pela letra iode. Ademais, estando em consonância com o amor, a avó e a princesa como que o consubstanciam, à medida que a avó o encontra e o eleva à plenitude, estendendo-o às gerações. Também o cristaliza na memória dos homens, por situar-se no nível da len­da e, portanto, na oralidade.

 

               Se no poema anterior, a coocorrência entre as imagens figu­ra­tiva e verbal se aproximava da abstração, em Homenagem a Aron Menda ela se inscreve nos limites da matéria. As razões são sim­ples: o poema cristaliza a figura de Doña Mary e seus contos, narrados a filhos e netos. A semântica verbal se associa à figu­ra­tiva, porquanto a letra lamed, l, formada a partir da raiz de dml, significa ensinar, instruir, aprender. Ora, Doña Mary, ao narrar os contos, ensina, instrui, e os filhos e netos aprendem. Além disso, encontra-se em lamed a idéia central de movi­mento, inerente às narrativas antigas, transmitidas de geração a geração, por intermédio da oralidade, à semelhança do movimento que passa de uma pessoa a outra, mediante o poder da fala. Não só isso, uma vez que o movimento na tradição hebraica inclui a pas­sa­gem do homem de um estado bruto à realização do ser. O a­prendi­zado, feito através das narrativas de Doña Mary, compreende tam­bém esta transformação, visualizada e objetivada por meio do simbolismo e da semântica da letra.

 

Ensinar a ser compreende algo mais que a fala. Para acres­cer as semias de forja, de cinzelamento do homem, também a simbo­logia de aguilhão se lhe aplica, porque conduzir o ser ao caminho inte­rior implica forjá-lo como que com os ferrões de uma guiada, a fim de que não saia das vias que o levam à essência. No caso do povo judeu, estende-se, ainda, às veredas que o conduz a Iavé, sempre estreitas, demandando o aprendizado do sacrifício.

A correspondência entre o signo verbal e o figurativo, pa­limpsestamen­te, às vezes, retroage aos hieróglifos, como consta­tamos no poema Epitá­fio para uma infanta, em que a morte, presen­te na linguagem deci­frada do verbo, substantiva-se na linguagem cifrada da letra mem. O primeiro desenho representa­tivo da letra mem, m, é exatamente uma coruja, símbolo do noturno e das sombras, mormente aquelas relacionadas à morte. Deste modo, o significado posterior de mem, bem como dos hieróglifos que o re­pre­sentam como as ondas do mar, devido às semias de mayim, sym, águas, também estabelecem relação semântica com o poema somente quando se voltam para o he­braico antigo, em que as vagas se rela­cionavam com o corpo huma­no angelizado, possível so­mente após a morte, e morte de infante, como verificamos no poe­ma. A alminha sem pecado que partiu de nossa casa/com sorriso nos lábios/pelos anjos carregada, é um ser angelizado e, portanto, re­presentado pelas vagas do mar e por mayim, palavra duplamente composta por mem, o inicial e o final:

 

                             Minha alminha sem pecado,

                             partiste de nossa casa

                             com um sorriso nos lábios

                             pelos anjos carregada.

 

                             Te atacou maldito mal,

                             remédios não tem salvaram,

                             nem os doutores mais sábios.

                             O Grande Éden te aguarda.

 

A alusão ao pecado, além de aludir ao mito de origem, revela o caráter efêmero do humano, marcado pela condição de mortal que, mesmo trazendo o selo de anjo, não vence este mal que lhe é inerente. A existência dos remédios e da sabedoria dos doutores é inoperante diante da morte. A esperança, entretanto, deposita-se na passagem, na travessia para o Grande Éden, simbolicamente grafado com maiúsculas, a fim de se converter em espaço e matéria do sublime, do divino, prenunciado pelos anjos.

 

Às vezes, a consonância entre os signos se dilui, a ponto de as semias ficarem somente no nível das representações, como encontramos no poema Melismas*, em que o discurso nos aponta a união entre o esposo e a noiva, a Virgem e Israel, realizada en­quanto fala divina. A analogia se estabelece de forma quase im­per­ceptível, pois, ao averiguarmos o significado de nun, dw,n, peixe, a noiva passa ser a própria religião, o povo hebreu, e nun, Nous, o Cristo ou Iavé:

 

                             Noiva ao som da mandolina, melismas no ar de cristal,

                             abre teu leque de sândalo e joga o cravo encarnado

                             do balcão enluarado onde tua pele trescala.

                             Vem, minha noiva querida, vem meu biju perfumado,

                             cheirando à espuma de almíscar e a banhos de água rosada.

              

Além disso, a relação entre a simbologia de mar se adensa através das melismas e, sobretudo, por outros vocábulos que encerram isotopias marinhas, como espuma, almíscar, banho e água rosa, em denso simbolismo de interação entre o nous e a noiva, figuração do povo e sua multiplicação, como se lê no mito. Além disso, o chamamento à noiva encontra-se na construtura profunda da letra, uma vez que nun representa o poder do matrimô­nio, expresso na ordem emitida pelo noivo: Vem, minha noiva que­ri­da, vem meu biju perfumado,/cheiran­do à espuma de almíscar e a banhos de água rosada. A conjunção dos textos, assim entendida, nos aponta para o constante chamamento que Iavé faz ao seu povo, transfigurado em noiva.

 

Percebemos, pela construtura semiótico-semântica deste poe­ma, que o símbolo procede a uma trajetória que visa ao claro-es­cu­ro das verdades, sejam elas individuais ou coletivas. Ás vezes, o mesmo poema apresenta semias duplas, explorando a totalidade das sugestões emanadas dos símbolos, como verificamos em Aberra­man III, califa que governou os sefarditas no período de 912 a 961, marcado pelo progresso das ciências. Esta devoção à ciência se desprende da semântica inerente à letra samekh, s, que vem da raiz d7ms, que significa apoio. O poema todo é uma exaltação ao conhecimento, notadamente a filosofia e a teologia, pois fala de alfa e ômega, o princípio e o fim, passando pelos sábios todos, na figura de um monge erudito, que pode ser São Jerônimo; sem se esquecer, é claro, de Aristóteles. Mas a letra samekh, sendo ini­cial da palavra seter, rts, o que é fechado, secreto, misterioso, evi­dencia os mistérios e os segre­dos da tradição, cultivados por A­berraman III e presentes na expressão o livro indecifrado.

 

A tradição, na ideologia que perpassa o discurso, comporta a permanên­cia dos sefardanas em suas relações com a religião e consigo mesmos, à medida que ela se conforma às semias de fonte inesgotável de vida. Para alegorizá-la, a poetisa se serve, mui­tas vezes, da figura da noiva, com suas potencialidades de vir a ser fecundada. No poema Córdoba, Sevilha, destila certo tônus erótico que, no conjunto do livro, se reveste de uma aura de sa­cralidade, sobretudo porque o erótico constitui a última e única forma de liberdade e de poder-ser. O poder-ser, em sua concepção metafísica, neste caso, confunde-se com o poder-ser ontológico e com o poder-estar, sentido ôntico, do povo sefardana, ex­presso, na estrutura profunda, mediante um dos significados da letra ayin, c, fonte. A morena tão decantada pelo ser lírico nada mais é que a fonte, a Virgem de Israel, sempre brotando vi­das que se consolidam na cultura cristalizada:

 

                             Morena, morena minha,

                             cheirando a ungüentos e mirra,

                             se um beijo ou cravo me atiras,

                             dou-te em troca meu destino.

 

O poder-ser se confirma através da mirra que, em seu simbolismo, estreita a relação entre o ser e o criador, ao apontar para a comunhão perfeita necessária para se atingir a essência. Não sem razão, o ser lírico se projeta no futuro, mediante o chamado processo confessional, em que efetua a troca do destino pelo beijo, ou o cravo, ofertados pela morena, que se conforma, por metonímia, à totalidade dos judeus. Não sem razão, a resina exsuda dos ramos do arbusto é símbolo de resistência, capaz de sobreviver no deserto, como o povo hebreu sobrevive às intempéries humanas. Para mais confirmar nossa interpretação, o cravo encerra a própria concepção do amor, como se a morena fosse a matéria amorável das relações entre o humano e o divino.   

 

Esta cultura se materializa em poesia no poema Bechinar, Salônica, à proporção que a poetisa joga com versos heptassílabos e hexassílabos, próprios das cantigas populares dos países ibéri­cos. É evidente que esta estrutura visa a enformar um conteúdo também popular, quais sejam as relações do sujeito lírico femini­no com o amado. No nível figurativo, as semias também apontam pa­ra a oralidade, à medida que a letra pe’, p^@,^@%, origina da palavra peh, hp%, que significa boca e, em sentido mais profundo, também quer dizer palavra, entendida como verbo, como criação. Deste modo, o poema, ao centrar-se na figura do amado e ao cristalizar costumes sefarditas, confunde-se com a tradição, outra acepção do vocábulo e da letra pe’.

 

O sentido da tradição segue um crescendum e se materializa no poema seguinte, Tefilin, que cristaliza os ritos necessários à leitura do Shemá*, Proclamação da fé que afirma a crença judaica na unidade de Deus e na lealdade de seu povo à vontade divina e aos mandamentos (1994, 138). A leitura do Shemá configu­ra, na tradição, o momento em que o homem, voltando-se para Deus e declarando-Lhe sua fé, parece cativá-Lo, como deixam entrever os significados dos verbos derivados da letra tsade, c, tsadah, hdc, tsodad, ddzc, e tsud, dz%c, que significam seduzir, cativar. Para consegui-lo, são utilizados o tefilin, o tzitziot, o mezuzá, o tefilá, componentes imprescin­díveis ao ritual.

A tradição é o talmud, a lei, e seus guardiães são sábios, como nos mostra o poema Chefes de Academias, em que a poetisa, como que petrificando as verdades sefarditas em linguagem, fala de Quatro sábios capturados pela frota andaluz. Na configuração semiótica do poema, a letra qoph, q, inicial da palavra qoph, Pzq, que significa macaco e procura à agulha, aparentemente, nada têm a ver com os sábios e com o talmud. Todavia, co­mo as correspondências sêmicas se dão também mediante os caracte­res simbólicos, constatamos a perfeita expressão da sabedoria nos dois sememas, uma vez que tanto um quanto outro são apontados co­mo representação simbólica da sabedoria. Como se tratam de símbo­los que remontam à culturas primeiras, como a chinesa e a hindu, passando para a grega e a hebraica, a sintonia com a ciência das leis se torna ainda mais consistente. O verdadeiro sábio age exa­tamente como os sábios de que fala a poetisa: fecha seus sen­ti­dos para o mundo exterior e se volta inteiramente para o mundo divi­no.

 

A cultura e a fé obedecem à estrutura dos mitos; estão sem­pre se renovando. Talvez por isso que tenhamos nesta primeira parte pelo menos três poemas reforçando a necessidade de fecunda­ção, de sucessão de gerações. Noiva sefardita não somente atuali­za o ritual do casamento, sempre acompanhado de utensílios sagra­dos, notadamente o Sidur*e a Torá, como deixa clara a noção de começo, de princípio de uma nova família e de recomeço do povo e da fé sefarditas, na alegoria inerente à noiva. Esta verdade não fica impressa apenas no discurso verbal, desprende-se ela, so­bre­tudo, da matéria simbólica, acimentada pelo tempo e presente na evolução dos traços que conformam as letras do alfabeto. Neste ca­so específico, a noção de princípio e, ao mesmo tempo, de coisa principal, como o são os ritos do casamento, substantivam-se por intermédio da simbologia da letra reš, r, inicial da palavra ro'š, #a)r, que traz em si estas semias. Assim entendido, o rito do casamento, mormente aquele afecto à preparação da noiva, não se configura como um ato de pessoa, para ser um ato de cultura; mas uma cultura íntima, porque recobre a história do indivíduo e do povo sefardita.

 

Mas o sentido maior da letra res e de ro's é cabeça, enten­dida tanto como princípio do homem, quanto como fala, à medida que é ela a parte em que se localiza a cabeça. Se cabeça nada tem a ver com noiva, tem muito a ver com a Torá, a verdadeira fala, enquanto lei escrita e cristalizada, a que os sefarditas devem seguir. Do mesmo modo que a cabeça dirige todo o corpo, a Torá contém as tradições e as normas por que o homem deve pautar suas relações com Iavé. O hieróglifo que representa o som [R], cor­res­pondente a res, uma boca, exprime, segundo Michel Vladimirovitch Skariatine (1984, 291) em sua significação mais elevada o Verbo divino, o Logos, o Filho de Deus, cuja manifes­tação visível era o sol, fonte de vida material sobre a terra. Era com o hieróglifo boca que se representava Ra, o deus da pala­vra para os egípcios. A alegoria do poema, neste caso, é perfei­ta, uma vez que não se pode pensar a Torá, como fala maior, sem se pensar em Iavé, a fala para os hebreus, manifesta principal­mente no Pentateuco.

 

Se o logos, palavra de Deus, é a lei sobre que se assentam as tradiç­ões e a essência e a existência do povo, também a lín­gua, à palavra, ty+, entendida como meio de transmissão das verdades divi­nas, constitui a pedra angular do povo com sua religião e seus cos­tumes. Mas um povo vive em contato com outros povos, à medida que as necessidades de subsistência dependem de todo um sistema de trocas. Para que a convivência e a subsistência sejam possí­veis, é imprescindível a paz, Shalon, mwOl#;O , como está colocada no poema Pela paz. Para materializá-la, decorrência, talvez, de sua precá­ria existência, a poetisa a joga com o simbolismo da letra šin, #, que aponta exatamente para a unidade e a multiplicidade, com­po­nentes sobre que a paz se assenta. Além disso, é ela inicial da palavra šen, N#, que quer dizer dente, elemento que, ao ligar-se à juventude e à jovialidade, deixa entrever que a paz não é um bem-estar gratuito, mas uma conquista. Não é sem motivo que a poetisa coloca como aposto de Sha­lon, uma imagem volátil, que se funda sobre o símbolo ornitológi­co da pomba, entendida como so­fia. Se a ave, sendo sabedoria, liga-se ao angelismo e até ao Espírito San­to, a paz passa a ser uma conquista entendida não apenas em sen­ti­do social; mas, sobretudo, como a Grande Obra e como trans­cen­dência. A paz, deste modo, abrange, antes de tudo, o sentido me­ta­físico.

 

Se o poema Pela paz cristaliza a imprescindibilidade da união, pelo menos, em torno da palavra, o texto que fecha a pri­mei­ra parte do livro, Menahem a Hasday, mostra o sofrimento de Menahem por defender as tradições, materializadas no logos, ou seja, a palavra, no sentido mais primitivo e profundo, conferido pela divindade. A palavra é a marca, como lemos nos simbolismos da letra taw, t@, inicial da palavra wt, que significa signo, marca. Entanto, se pegarmos o signo taw em sua origem mais primi­tiva, verifi­camos que ele era representado por uma cruz, símbolo de separação de uma unidade fundamental. A letra taw nas circuns­tâncias do poema e do livro, representa exatamente a dispersão, a diáspora, os tempos de degredo por que passarão os sefarditas a partir de 1492.

 

Mas a cruz é, também, contradição. Ora, de certa maneira Deus é contradição, à medida que Menahen, não obstante sábio, não capta seus desíg­nios, uma vez que lhe arrebata a liberdade exata­mente nos dias da Pessach e do Shabat. A existência de Mena­hen se converte em paradoxo, à medida que pregava a liberdade, que se con­funde com a própria palavra:

                                                                                       Agora tuas promessas

                                           rasgadas as esqueces. É Pessach, Shabat:

                                           no mais sagrado dia a liberdade tiras

                                           a quem só quis ser livre, escravo da palavra.

 

A imbricação do visual com o verbal, nas circunstâncias da primeira parte desse livro, constitui uma maneira inusitada de composição poemática, uma vez que no espaço que se segue à letra, encontra-se também o poema verbal; só que inserido na isotopia dos símbolos. A correlação entre o visual e o verbal é tamanha, que podemos dizer que a letra conforma o poema. É evidente que a circunscrição das semias depende do poema verbal, pois é ele que determina os limites semânticos dos signos, porque se desprende palimpsestica­mente do espaço em branco da folha anterior. Do con­trário, te­rí­amos, no visual, todos os simbolismos das letras e, não, espe­ci­ficamente aquele refletido pela construtura lingüís­tica.

 

 

2 - AUSÊNCIA

 

     A presença da letra, além de configurar um componente artístico, carrega consigo toda a tradição e, com ela, toda a cultura hebraica, notada­mente a religiosa, que sustenta o povo como nação. A ausência da letra, na segunda parte, não somen­te retira o princípio norteador do verso, embasado no simbolismo, mas materia­li­za estados de ser em que as relações do homem consigo mesmo e com Deus pare­cem estremecidas. Assim entendido, a pagina em branco, que antecede o poema, constitui a matéria da ausência. Porém, uma ausência que é presença, porque refletida no poema, que sua fala autêntica. Estabele­ce-se, deste modo, a diáspora, marcada por fortes ero­sões na construtura metafísica e social do ser e da nação, como nos atesta o poema 1492, em que morte e nascimento se sucedem, não tanto para representar os ciclos da vida, mas para objetivar a crueldade imposta aos expulsos de Sefarad. Se na primeira parte o canto dos salmos ocorria em momentos de significação ímpar, co­mo o Shabat e a Pessach, em que se louva a Iavé com alegria, agora são eles entoados em meio às lágrimas, porque se não compreendem as razões de se emigrar-imigrar e de se perder tudo:

 

               Uns morrendo, outros nascendo, os expulsos de Sefarad,

assim prossegue a coluna. Vão entoando os seus salmos,

               ao som do adufe e pandeiro, vão cantando seus cantares,

               regando com suas lagrimas a poeira da estrada.

               Pelos caminhos de Córdoba, arrastando-se até Málaga,

               dos Altos de Montichel, com a magia toledana,

               sussurram preces secretas, os restos de seus salvados.

               Dirigem-se à Salônica, ou permanecem na Itália,

               ou cruzam Gib-el-Tarik, em busca dos antepassados,

               outros vão para a Provença, ou para a corte de Haia,

               e o sangue que via nas veias dos Enriquez, Mendes e Arias

               se um malsin não denunciou, é marrano nos que ficaram.

               D. Fernando e Isabel, mergulham suas mãos ávidas

               nas riquezas que enfunaram as velas de Cristobal.

               Em breve estarão vazios os porões de D. Ishaq.

               Trens carregando, sinistros, expulsos de Sefarad

               pelas estradas da Europa, para as câmaras de gás.

               Vão entoando seus salmos, vão cantando seus cantares.

 

A extensão da diáspora e do que ela representa, estende-se pelo tempo, chegando até as câmaras de gás dos anos novecentos e quarenta. A expressão expulsos de Sefarad perde seu significado preciso e passa a aplicar-se a toda situação que implica sofrimento, dis­persão e morte. Este salto no tempo, não obstante causar certo estranhamento, constata-se na imagem reflexa do espelho, operada na conjunção numérica, pois, se procedermos a uma troca da dezena, nove, pela centena, 4, te­re­mos 1942, os mesmos números repetindo, séculos depois, situa­ções semelhantes, só que com mais acentuada crueldade. Em 1492, no entanto, tínhamos simbolismos que não levavam à unidade, mas ao soturno da morte, porque os números cinco, resultan­te da soma de 1 + 4, e onze, de 9 + 2, apontam para o nefasto. Mesmo assim, coincidentemente ou não, o retorno à perfeição já estava previsto àquela época, uma vez que, somados todos os números, 1 + 4 + 9 + 2 = 16, temos sete, 1 + 6 = 7, uma cifra revestida de simbolismos altamente positivos.

 

               Incrivelmente, 1942, não obstante marcar o extremo sofri­mento, encerra maior densidade simbólica, voltada para a posi­tivida­de. Assim, a soma de 1 + 9 = 10, aponta para a esperança que realmente se concretiza: o retorno à unidade, como ocorrerá com a criação do Estado de Israel. Mas é a cifra resultante da soma de 4 + 2 = 6 que irá, a despeito de todos os percalços, constituir-se o signo do povo hebreu: o poder; também materializado pela estrela de Salomão com suas seis pontas. Poder de superação e de reconsti­tuição, mesmo que as adversidades pareçam capazes de levá-lo à ex­tinção. É por isso que a diáspora dos sefarditas se interliga ao holocausto do século XX. Conjunção operada no nível da matéria, prevista pelo número cinco, e no nível metafísico, inserto no nú­me­ro sete, mostrando que o caos sempre dará origem ao cosmos.

 

A semântica da ausência, da mudez da morte, entrevista pelo espaço em branco, aparentemente assêmico, que transfere o simbo­lismo para uma es­fera diferente daquela sugerida pelas letras, prossegue no poe­ma Órgãos, em que as imagens antostóficas (flor) e aromatóficas em vez de se imbricarem à vida e à alegria da positividade, como vimos nos poemas da primeira parte, materia­li­zam as semias da au­sência, da oclusão e das sombras: Outra cabeça ornarão seus cabe­los tão perfumados/de jasmim enluarado dentro de um frasco lacra­do.

Essa semântica da negatividade inicia pelo título do poema, à medida que órgão significa cada uma das partes de um organismo, ou corpo vivo, que exerce uma função especial. Ora, nas imagens que compõem o discurso, os órgãos mãos e cabeça, expressão máxima do ser humano, uma vez que se toma a parte pelo todo em termos simbólicos, representam, na verdade, a inanição, porque partes de um corpo morto e sepultado, porquanto depositado dentro de um frasco lacrado. Esta interpretação se torna mais evidente, quando tomamos o vocá­bulo órgão em seu sentido etimológico de órganon, organon, instrumento. A mão, instrumento de ação, e extensão do corpo portanto, configurando-o como um todo , encontra-se cruzada so­bre o peito, substantivando o estado de inação total, e cabeça, órgão do pensamento, substância do ser, também é incapaz de exerci­tar esta função de vida, porque está ornada com perfumes de morte:

 

Emoldurada por lírios a infância por fim serena.

Cruzadas estão as mãos abaixo dos seios pequenos.

Outra cabeça ornarão seus cabelos tão perfumados

de jasmim enluarado dentro de um frasco lacrado.

Chora o menino inclinado sobre o beijo que não deu

na rosa desfalecida que a morte agora acolheu.

 

Sintomaticamente, a letra [O] da palavra Órgão que intitula o poema, encontra-se em vermelho. Ora, essa letra, ayin, (, hieroglífica e ideogramicamente se relaciona com o olho e, sobretudo, com fonte. Na construtura semiosférica do poema, o fato de os dois configurarem-se como sangue, simbolismo da cor vermelha, além de materializar um sofrimento singular, porque de morte, ainda aponta para uma espécie de castigo primordial, uma vez que a fonte, simbolicamente, é fonte de sangue. Não podemos nos esquecer, porém, que, na ambigüidade própria das imagens que perfazem os versos, este sangue representa, também, a possibilidade do retorno ao cosmos, já que à morte se segue, sempre, algum nascimento.

 

Estamos verificando, pela análise, que os poemas continuam sendo erigidos sobre símbolos cristalizados pelo tempo, só que sem a potência do sagrado, emanada da milenar tradição que envolve a constituição dos signos do alfabeto. Se, na primeira parte, o branco das páginas pares era preenchido pelo significado da letra que se refletia na página ím­par, agora, temos uma verdadeira semântica do vazio, à medida que o espaço em branco conforma o silêncio e a mudez do nada, como podemos averiguar no poema Auto da fé em Sevilha. Os simbolismos de porta, passagem entre dois estados, definitivamente marcados pela presença e pela ausência, patenteiam o estar-se do outro la­do. Mas esta condição de nada, cortejo triste, vem sempre acompa­nhada por um processo alquímico em que se espera um renascimento: Auto da fé. Todavia, a fé não elimina os desesperos da cultura e da raça, pois, queimar rolos de rimmonin* é extinguir a posteri­dade, uma vez que em Sevilha não ficará qualquer semente que lem­bre a presença dos sefarditas:

 

Pela Porta das Pérolas o cortejo triste:

queimaram-se na fogueira os rolos de rimmonim

e Yehuda bem Verga ora pelos perseguidos.

A prata laminada já foi toda extorquida,

e déspota em Sevilha o arcediano de Ecija.

Bairro de Santa Cruz, onde estão os alfaquim,

teus médicos e poetas, apontando os caminhos?

Os vasos de azaléias, sem dono, enegrecidos.

 

A extinção da raça, simbolizada pela prata laminada, princípio feminino, implica a eliminação de todos os bens, porquanto a imagem metalófica simboliza todas as riquezas. Mas a ex­pulsão dos hebreus não compreende apenas a extorsão da matéria e dos elementos indispensáveis à subsistência, estende-se ela à extorsão de qualidades metafísi­cas, mormente a dignidade também entrevista na imagem urânica, à medida que o brilho do metal, além de relacioná-lo com a luz lunar, eleva o ser à condição do sublime. Mas permanecem os vasos de azaléias sem dono, enegre­ci­dos, aguardando possíveis sementes que poderão germinar e iniciarem novo povoamento hebreu. É verdade que estas esperanças encontram-se toldadas pela sombra do nada, porque estão os vasos enegrecidos e o poema, antecedido de uma folha em branco, que po­derá ser povoada por positividade ou por negatividade.

 

As cores negativas, como o enegrecido, permanecem mesmo em poemas em que se cantam noites de bem-querer, de Moreno, moreno. Na primeira parte o amor, sempre obedecendo a ritos e rituais precisos, era distinguido pela fecundida­de, pela magia de símbo­los positivos. Na segunda, as imagens se erigem sobre componentes negativos. Assim, ao começar pela lua cheia que, ligada à fecun­dação e ao brilho, deveria conduzir à luz, é encoberta pelas nuvens da tempestade, escurecendo-se. Em conseqüência, escurecem também as noites de bem-querer, pois, no exílio, até o amor está sempre envol­to por uma atmosfera de sofrimen­to.

 

Se no espaço da presença, em que as verdades se transformam em pala­vras, a ausência penetra surdamente nos interstícios das imagens, no espaço da ausência, vazio, mas sêmico, a presença do nada se reifica. Deste modo, até mesmo a transfiguração do bem-querer opera, indiretamente, uma semântica sombria, em que as esperanças existentes soerguem-se em meio ao desespero, uma vez que inclusive o peixe, símbolo de regeneração, ao levar o amante para as profundezas, incorpora semias das águas inferiores que conduzem ao sacrifício, confirmado pelas nuvens de tormenta.

 

Mas a lua sempre expande raios de fecundidade, entrevistos por sua feminilidade; tanto que, no poema seguinte, Istambul, os restos de Andaluzia cruzam a Porta da Alegria com suas crias, is­to é, com seres que darão conti­nuidade ao povo sefardita. A Porta da Alegria, neste contexto, constitui a passagem para um novo es­tado de ser já entrevisto nas cores do arco-íris. Além disso, a imagem do arco-íris, conjugada à da porta, corporaliza o novo ca­minho, a nova travessia que os sefarditas devem transpor neste espaço existen­cial e social de Istambul.

 

A massa dos sem-destino, diante de tantos simbolismos posi­tivos, mesmo caminhando no espaço da ausência, porque desprotegi­da pelas letras, atravessa para a esperança. É verdade que, co­mo toda travessia, terá de enfrentar obstáculos, mar de inimi­gos, de hereges em seu martírio, além da destruição do império. Mesmo assim, o espaço em branco, na construtura do poema, funcio­na como tempo de provação, porque estão distanciados da língua. A dis­tância dos símbolos e dos signos que a compõem, configura o espa­ço de degre­do, em que tudo parece ruir; até mesmo as esperanças.

 

Se na primeira parte, o poema nascia do simbolismo das le­tras, entrevis­to no espaço em branco, como se o segundo se colo­casse sobre o primeiro, como se verifica com os palimpsestos, nesta, o poema nasce do nada da folha e do nada que ameaça o povo sefardita. Assim, a folha em branco que antecede a cada poema, não é apenas o espaço da ausência, é também o espaço do silêncio, da mudez. Mu­dez que se caracteriza pela perda da palavra e, so­bre­tudo, pela perda de bens materiais e, mormente, pela perda que tipifica a errância, própria do homo viator. Essa errância pode ocorrer em qualquer lugar, como a observada no poema Filho de Sussan, em que ela se processa nos limites do jardim. A mudez do nada, nas cir­cunstâncias do poema, transmuda até simbolismos positivos, como o do jardim, em símbolos negativos, pois errar pelo jardim, que se­ria andar por espaços tranqüilos, configuração do paraíso e, por extensão, espaço de sonhos, revela-se lugar de perda, de dano, de morte. Como conseqüência do extermínio, o can­to do piyutim* que de­veria enunciar alegria, festividade, converte-se em canto de mor­te, porque se sobe para onde não há retorno:

 

               Erra pelos teus jardins, em busca de sonhos perdidos,

quinhentos anos plantados, navios, palácios erguidos,

descendente de Sussan. Que será de ti (ai de mim!)?

As estrelas se confundem com a luz do farol de Esmirna.

Quando regressei da escola, solombras no átrio vazio,

marcos claros nas paredes, insólito souvenir.

E ao longe a coluna sobe, salmodiando os piyutim,

para onde não há retorno, neves eternas, sombrias.

Adeus Urla, adeus Kafkaz, águas negras da Turquia.

 

A sutileza com que expõe, através de imagens onomásticas e topográficas, a descendência dos que nasceram ou morreram em campos de concentração, além da referência a escritores de origem judia, torna esse poema singular, pois, através dele, estabelece a ponte entre o passado sefardita e o século XX, estendendo-se até o presente. A presença da religião, no entanto, surpreende, à medida que, mesmo em meio à desgraça, jamais se esquecem de salmodiar o piyutim.   

 

O absenteísmo materializado em imagens verbais e, princi­pal­mente, na linguagem do vazio, implica a extorsão dos mais sa­gra­dos símbolos da religião hebraica, elencados no poema Nunca mais: a menorá, a torá e a mezuzá. A diáspora não se conforma tanto pela ausência do sefardita, mas pela extinção dos símbolos, uma vez que o desaparecimento deles representa uma perda maior: a cultura cristalizada em símbolos que materializam verdadeiro estado de ser judeu e, sobretudo, o aban­do­no de Iavé. É por isso que o verdugo os busca avidamente em to­dos os lugares: Sefarad, Gerais e Cracóvia. No silêncio da folha e no vazio dos signos, estes espaços se estendem a todas as partes em que o judeu é perseguido:

 

É noite em Sefarad, busca o verdugo a menorá.

Dorme, dorme, meu filhinho, a mamãe te esconderá.

 

É noite nas Gerais, procura o verdugo a torá.

Dorme, dorme, meu filhinho, a mamãe te esconderá.

 

É noite em Cracóvia, buscam pela mezuzá.

Dorme, dorme, meu filhinho, a mamãe te esconderá.

 

É noite dos cristais, quem festeja Rosh Hashaná?

Dorme, dorme, meu filhinho, a mamãe te esconderá.

 

 Por isso, muito significativamente a mãe faz o filho dormir e o esconde, porque é ele a semente que germinará novas gerações de sefarditas quando a Presença retor­nar, mesmo não se podendo festejar o Rosh Hoshaná, o ano novo, como esta ausência implicasse, simbolicamente, a extinção de todas as esperanças. A semântica do vazio se confirma no poema Shabat, quando o pai, ao celebrar o descanso, rezando ao Senhor, fá-lo sem fé, descrente em Iavé perdido. Perder Iavé, mesmo rezando-se os sal­mos e cumprindo as leis da torá, implica perder tudo, inclusive a vida, como fica claro na retirada de todos os seus simbolismos positivos, substantivados nas letras do alfabeto. A ausência de Iavé é o vazio da linguagem, da palavra, da existência, que se converte em dor de degredo:

 

               Para ascender velas bentas nos dois castiçais,

               aqui estou. Bruxoleiam no silêncio as almas.

               Bem-vindos, anjos do lar, bem-vindos ao Shabat.

               O mantel branco está posto e o pão trançado espera

               que a mão secreta consagre o vinho abençoado

               dos doces bagos sagrados, salmos de Davi.

               Que o meu amado, querido pai, à cabeceira,

               reze sua prece descrente em Jeová perdido!

               Que minha irmã tão sofrida ao meu lado retorne,

               acompanhando um coral de serafins e arcanjos,

               pois do mais alto dos céus abrem-se todas as portas

               com seu canto. As cadeiras vazias aguardam

               e virão logo os amigos partidos à noite

               sem um adeus. A família se reúne, a clã,

               para as antíforas, antes de a estrela aparecer.

 

Mesmo havendo perdido Iavé, os hebreus O não esqueceram; mantiveram a tradição, obedecendo às determinações das leis e co­me­morando as festas cristalizadas pela cultura. O degredo não lhes empanou a memória do Shabat ou do Rosh Hashaná, como o registra a poetisa no poema Mikvá, em que canta o ritual do batismo,ou do banho dos convertidos, e a consequente entrada do Ano Novo judaico, uma vez que iniciado nos ritos e rituais do judaismo. Em todos os ritos, rememora-se a diáspora, a errân­cia, como um estigma e como forma de se estar sempre diante de Iavé e de implorar suas bênçãos. A diáspora além de correla­cionar com a ausência da terra e com o abandono de Iavé, substan­tiva a perda dos símbolos que representam o Logos, entendido como palavra primeira e objetivado na semiótica da folha em branco que, sem signos, é também signo, à medida que encerra a semântica da mudez, do silêncio, da ausência e, portanto, da diáspora do povo e da fala:

 

Olhos cerrados palpo nos degraus

meus pés desnudos. Lajes que porejam

no poço mais secreto de abluções,

murmúrios d’água:

 

diáspora, borrifos e lamentos

ecoam sempre úmidos shofares

dos pastores expulsos dos rebanhos

judeus errantes.

 

Aqui deixaram suas velas bentas

e recitaram o kidush provando

a maçã doce e o mel ao pôr-do-sol,

Rosh Hashaná.

 

Verificamos, por esse poema, que, a despeito de todos os sofrimentos expressos em imagens patóficas, em que se vêem borrifos e lamentos, matéria de diáspora e expatriação, entoam-se os shofares e se comemora o ano novo, numa espécie de permanência da tradição, à medida que ela representa a alma do povo e, sobretudo, a renovação operada em nível metafísico-teosófico.

 

               A esperança ou a confiança manifesta em quase todos os tex­tos de Memórias de Sefarad desembocam no último poema, Purim*. Ne­le, processa-se uma fusão entre Iavé e o povo hebreu, quando o rei escolhe Esther dentre as demais donzelas. Esther representa o elemento de continuidade do povo e das relações entre Deus e os sefarditas, operado mediante a união do masculino com femini­no, o mi, ym, e o ma, hm, e por meio do Logos, encarnado na palavra Esther, a es­trela-guia, a boa sorte, a fortuna:

 

Perfuma minha alcova, Esther,

foste a escolhida entre as donzelas.

As mãos de um rei sobre tua pele

tornam-se servas e estremecem

a cada nova descoberta.

 

Perfuma minha noite, Esther,

ó escolhida entre as donzelas.

Em teu sorriso há um mistério

e nos portais de tua entrega

iluminado eu entro cego.

 

Espalha tua mirra, Esther,

ó preferida entre as donzelas.

Que os teus gemidos de gazela

esta fingida morte selem

e de prazer tornam eterna.

 

Teu nome chamarei, Esther,

entre as centenas de donzelas.

Deponho o reino aos teus pés,

ao teu comando deixo o cetro

e do banquete fico à espera.

 

Assim interpretado, o livro apresenta um processo cíclico, porquanto o último poema não fecha o discurso, mas coliga-o ao início, restabelecendo-se as relações com Iavé, com a terra, à medida que se conquista o estado de ser metafísico, teosófico e social, a­tra­vés da união com Esther. Ao recuperar a presença de Iavé, recu­pera-se também a palavra, a linguagem, e, com ela, os símbolos cristalizados pelo tempo, pela cultura e pela religião, materializa­dos em signos e em silêncios semióticos. O caos volta a ser cosmos.

 

Memórias de Sefarad resgata a tradição sem ser tradicional. A constru­tura dos poemas revela-se extremamente atual, à medida que funde códigos verbal e semiótico, sem aparentar que está se erigindo sobre os alicerces do poema visual. Conhecedora dos sim­bolismos das letras do alfabeto hebraico, a poetisa transforma ca­da letra em um poema, com a diferença que, ao conjugarem-se com o verbal, os dois poemas passam a compor uma unidade, uma vez que há um processo de imagens reflexas que os une.

 

Os símbolos inerentes a cada letra, ao remontarem aos hie­ró­glifos, escrita primeira, confere-lhes também o status de pala­vras primeiras, confun­dindo-se com o logos e, em decorrência, com Iavé. Esta relação é tamanha que, ao ocorrer a ausência da letra, procede-se, também, a perda de Iavé. A conseqüência é a diáspora, a dor, o sofrimento. Recuperar a letra, nesta situação, é recobrar os símbolos, o próprio Iavé.

 

Recupera-se Iavé somente por meio da oração. Ao compor-se, consoante as normas do abecê, inauguradas no Salmo 118, Memórias de Sefarad funciona como um livro de salmos, em que não somente se louva o Senhor, como re-atualiza as cantigas cristalizadas pela tradição sefardita, mediante uma forma nova, porque recriadas ex novo. Memórias de Sefarad constitui, por estes aspectos, um livro de poemas sui generis na literatura brasilei­ra.

               BIBLIOGRAFIA

 

ALLENDY, Docteur René. Le symbolisme des nombres. Paris: Chacor­nac Frères, 1984.

BURGOS, Jean. Pour une poétique de l'imaginaire. Paris: Seuil, 1982.

CHEVALIER, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.

DURAND, Gilbert. Las estructuras antropológicas de lo imaginario. Madrid: Taurus, 1982.

FERNANDES, José. O poema visual. Petrópolis: Vozes, 1996.

----- O selo do poeta. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2005.

----- Poesia e ciberpoesia. Goiânia: Kelps, 2011.

----- A linear do ponto G. Goiânia: Kelps, 2011.

GUSDORF, Georges. A fala. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977.

HEIDEGGER, Martin. Carta ao humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Aguilar, 2007.  

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade de representação. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1966.

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Memórias de Sefarad. Florianópolis: Livros do Athanor, 1994.

SKARIATINE, Michel Vladimirovitch. La langue sacrée. Paris: Mai­sonneuve & Larouse, 1984.

SOUZENELLE, Annick de. La lettre chemin de vie. Paris: DervyLi­vres, 1987.

────────── O simbolismo do corpo humano. São Paulo: Pensamento, 1993.

TELES, Gilberto Mendonça. A retórica do silêncio. São Paulo: Cul­trix, 1979.

WARRAIN, Francis. La théodicée de la kabbale. Paris: Guy Tréda­niel, 1984.

 

 

Veja e este respeito os livros O poema visual. Petrópolis: Vozes, 1996, e Poesia e ciberpoesia. Goiânia: Keps, 2011, de nossa autoria.

* Cerimônia de casamento.

* Festa que se celebra sete semanas depois da Pessach.

* Trecho melódico de várias notas para uma mesma sílaba. 

* As duas primeiras palavras de seção da Tora que constituem a profissão de fé do monoteísmo.

* Livro que contem as três preces diárias e Shabat, Rosh Chôdesh e Yom Tov.

* Pergaminhos da Torá.

* Poema litúrgico judaico, geralmente cantado ou recitado durante os cultos religiosos.

* Festa do décimo quarto dia de Adar, o dia mais alegre do calendário judaico. Adar é o décimo segundo mês do calendário.   


 

 

 
 
 
Home Poetas de A a Z Indique este site Sobre A. Miranda Contato
counter create hit
Envie mensagem a webmaster@antoniomiranda.com.br sobre este site da Web.
Copyright © 2004 Antonio Miranda
 
Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Click aqui Home Contato Página de música Click aqui para pesquisar