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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



ZILA MAMEDE

(1928-1985) 

 

Nasceu na Paraíba mas está mais ligada às letras e à cultura do Rio Grande do Norte, onde viveu a maior parte de sua vida e onde o mar a levou para sempre. O poema Elegia, incluído na presente seleção, é como um prenúncio de seu destino.  Formada em biblioteconomia, tendo exercido cargos de importância no Instituto Nacional do Livro (em Brasília) e como diretora da Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Seus principais livros: Rosa de Pedra (1953), Salinas (1958), O Arado (1959), Exercício da Palavra (1975), A Herança (1984) e Navegos (Poesia reunida 1953-1978).  Poeta sutil, elegante, de um lirismo contido e introvertido, de solidão e paixão mas também, não raras vezes, com um fundo social relativo às temáticas do sertão nordestino. Drummond tinha-a entre suas predileções.

 

(...) fiquei feliz em ler Exercício da palavra, e até me arrependo de ter

publicado um livro também em 75. Na geração de Zila Mamede nin-

guém fez algo mais importante. Algo tão sólido, tão inovador — sem

chegar ao excesso —, onde ela não perdeu a noção do funcional, que é

básico em arte.  JOÃO CABRAL DE MELO NETO (Tribuna do Norte, Natal, 22 fev. 1976.)

 

 

 

Veja também: ZILA MAMEDE, poema de Antonio Miranda

 

TEXTOS EM INGLÊS

 

 

MAMEDE, ZilaNavegos (poesia reunida, 1953-1978).  Belo Horizonte, MG: Editora Veja, 1978.  201 p. 15x22,4 cm.  Capa e ilustrações: Paulo Bernardo F. Vaz.  Foto da poeta na última página: Carlos Lyra.

 

BILHAR

       a Ludi e Oswaldo Lamartine

 

Na medida exata

em que a noite corre

não fico: me ausento

como quem morre

 

Entre lousa e livro

- único disfarce

que concedo ao tempo =

mudo-me a face

 

que, no entanto, vária,

inábil, reprimida,

perde-se no encontro

tátil da vida

 

Bola sete em rude

pano de bilhar

marco meu sem rumo

jogo-de-amar.

 

 

PROCISSÃO  


Quando vem a procissão

no seu passo de perdão,

 

Alcaide, comendador

dominam povo e andor

 

Cada grupo de irmandade

empunhando uma verdade:

 

A das Filhas-de-Maria

virgindade em romaria

 

Do SSmo Sacramento

vermelha de emproamento

 

Do Senhor Jesus dos Passos

roxo em santos e devassos

 

Irmãs da Ordem Terceira

terço em mãos de camareiras

 

Os meninos da Cruzada

fome na barriga inchada

 

A Banda da Prefeitura

solo e soldo de amargura

 

Estandartes, confrarias

escondem velhacarias

 

O Santo vai carregado

pelos donos do mercado

 

E o povo segue inocente

descalço, nu, paciente:

 

- A compacta multidão

carente de Deus e pão.

 
 

A PONTE

 

Salto esculpido

sobre o vão

do espaço

em chão

de pedra e de aço

onde não

permaneço

                   - passo.

 

MAMEDE, ZilaO arado.  Poesia.  Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959;  37 p. 
13x18,5 cm. 

 

ARADO


Arado cultivadeira

rompe veios, morde chão

Ai uns olhos afiados

rasgando meu coração.

 

Arado dentes enxadas

Lavancando capoeiras

Mil prometimentos, juras

Faladas, reverdadeiras?

 

Arado ara picoteira

sega relha amanhamento,

me desata desse amor

ternura torturamento.

 

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OUTROS POEMAS

 

ELEGIA

 

Não retornei aos caminhos

que me trouxeram do mar.

Sinto-me brancos desertos

onde as dunas me abrasando

tarjam meus olhos de sal

dum pranto nunca chorado,

dum terror que nunca vi.

 

Vivo hoje areias ardentes

sonhando praias perdidas

com levianos marujos

brincando de se afogar,

com rochedos e enseadas

sentindo afagos do mar.

 

Tudo perdi no retorno,

tudo ficou lá no mar:

arrancaram-me das ondas

onde nasci a vagar,

desmancharam meus caminhos

- os inventados no mar:

depois, secaram meus braços

para eu não mais velejar.

 

Meus pensamentos de espumas,

meus peixes e meu luar,

de tudo fui despojada

(até das fúrias do mar)

porque já não sou areias,

areias soltas de mar.

Transformaram-me em desertos,

ouço meus dedos gritando

vejo-me rouca de sede

das leves águas do mar.

 

Nem descubro mais caminhos,

já nem sei também remar:

morreram meus marinheiros,

minha alma, deixei no mar.

 

Pudessem meus olhos vagos

ser ostras, rochas, luar,

ficariam como as algas

morando sempre no mar.

 

Que amargura em ser desertos!

Meu rosto a queimar, queimar,

Meus olhos se desmanchando

- roubados foram do mar.

No infinito me consumo:

acaba-se o pensamento.

No navegante que fui

sinto a vida se calar.

 

Meus antigos horizontes,

navios meus destroçados,

meus mares de navegar,

levai-me desses desertos,

deitai-me nas ondas mansas,

plantai meu corpo no mar.

Lá, viverei como as brisas.

Lá, serei pura como o ar.

Nunca serei nessas terras,

Que só existo no mar.

 

 

 

Rua (TRAIRI)

 

Nos cubos desse sal que me encarcera

(Pedras, silêncios, picaretas, luas,

anoitecidos braços na paisagem)

a duna antiga faz-se pavimento.

 

Meu chão se muda em novos alicerces,

sob as pedreiras rasgam-se meus passos;

 

e a velha grama (pasto de lirismos)

afoga-se nos sulcos das enxadas,

 

nas ânsias do caminho vertical.

Ao sono das areias abandonam-

se nesta rua vívidos fantasmas

 

De seus rios meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.

 

 

MAMEDE, ZilaO arado.  Poesia.  Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959;  37 p.  13x18,5 cm.     Col. A.M. 

 

MARCHA PARA O JUMENTO PASSARINHO

 

Passarinheiro

que invoou

Passaligeiro

que não bicou

Você apenas

tão jumentinho

milpradiou

a Pedradágua

lajeslisando

da Corujinha

pró Corredor.

 

Passacaminho

de caçuás

com resedás

se engravidou.

 

Passariinho

que não tem ninho

despassará?

 

Passadotempo

aguassecou

E passarinho

desruminando

não mais lajeiro

passarinhou.

 

              (O Arado)

 

 

A APANHA

 

Do verde o espanto cresce, de repente

se enramam tabuleiros e baxios,

renascem ventanias, sons raízes,

 

nervuras duma terra que desperta

alucinadamente a fecundar-se.

Agora é tudo um sol encantamento

 

nos acres cultivados em xadrez.

As ramas do algodão reverdecidas

habitam-se de flores amarelas

 

irresistíndo à chega dos casulos.

Branca oferenda mostra-se o plantio

quando revinda a apanha. Apanhadores

 

irrompem dedilhando fibra e hastes:

 

estendem nas clareiras alvos seios

de carregadas plumas pelas aves.

 

Quando a lavoura escuta as vesperais

se cala, pois há lábios fatigados

cantando sua apanha no paiol.

 

Lenta, Ia fora, no rocio, a seiva

fia maçãs, funda capuchos, gomos;

As ladainhas descem dos oiteiros,

 

cansaços se horizontam nas esteiras

onde é o amor, sementa, lavradura

nas noites desse algodoeiro chão.

 

 

CAVALO BRANCO

 

Cavalo branco

aos cereames abandonado

incerto

nessa pureza de menino antigo.

 

Cavalo branco

branco de ninguém.

 

Mastiga teu silêncio;

o meu, deixa-o

 

largando-se aos fantasmas;

pisa-o

 

para que as pedras sejam seu regaço,

que as pedras são presenças neutras,

apenas.

 

Cavalo branco

assoberbado só :

 

na firmeza dos cascos

há caminhos ocultos que me esperam.

 

 

BOIS DORMINDO (I)

 

          Para Tomé Filgueira

 

A paz dos bois dormindo era tamanha

(mas grave era a tristeza de seu sono)

e tanto era o silêncio da campina

que se ouvia nascerem açucenas.

 

No sono os bois seguiam tangermos

que abandonando relhos e chicotes

tangiam-nos serenos com as cantigas

aboiadeiras e um bastão de lírios.

 

Os bois assim dormindo caminhavam

destino não de bois mas de meninos

libertos que vadiassem chão de feno;

 

e ausentes de limites e porteiras

arquitetassem sonhos (sem currais)

nessa paz outonal de bois dormindo.

 

MAMEDE, Zila.  Exercício da palavra (Poesia, 1959-1975).    Natal, RN: Fundação José Augusto, 1975. 73 p.  13,5x18,5 cm.   Inclui “Errata” ao final do livro. 


RÉQUIEM   PARA  CERTO   AMOR

 

JAZZ

 

no papel

a mágoa

o rosto

o tato

a rosa

o fato

 

Fixa

 

a palavra

 

passivamente

o homem

o ato

a dor

o pacto

o amor

 

nascente

morrente

no tempo

ex 

ato.

 

CAMPOS, Milton de Godoy.   Antologia poética da Geração 45. 
São Paulo: Clube de Poesia, 1966.   207 p.  16 x 23 cm.   
Ex. bibl. Antonio Miranda

 

               CANÇÃO DA RUA QUE NÃO EXISTE

Ideia da cor da rua
Que não tem cor nem tem nome,
Sem gesto, cansada, nua,
Rua pavilhão da fome.

Rua asfaltada de lama,
Tetos negros de fumaça.
A calçada fria e cama
Para os que bebem cachaça.

Ideia que não tem cor
Verteu-se negra do fumo
Daquela rua da dor,
Da rua que não tem nome.

Perdida ideia na rua.
Na rua que não existe
Mas que, sem gesto que nua,
Ao tempo, incerta, resiste.



P A R T I D A

Quero abraçar, na fuga, o pensamento
Da brisa, das areias, dos sargaços;
Quero partir levando nos meus braços
A paisagem que bebo no momento.

Quero que os céus me levem; meu intento
É ganhar novas rotas; mas os traços
Do virgem mar molhando-me de abraços
Serão brancas tristezas, meu tormento.

Legando-me  meus mares e rochedos,
Serei tranquila.  Rumarei sem medos
De arrancar dessas praias meu carinho;

Que amando-as me verás nas puras vagas.
E te verei nos ventos de outras plagas:
Juntos — o mar em nós será caminho.

                                                                                                                                                             

 

MEMÓRIA VIVA DE ZILA MAMEDEEntrevistadores: Carlos Lyra (coordenador), Alvamar Furtado, Celso da Silveira.   Natal, RN: Editora Universitária, 1987.  14,5x21 cm.  33 9,   Capa: Alexandre Oliveira.   Tiragem: 300 exs.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

 

ALVES, Alexandre Bezerra..  Silêncio, mar. A poesia de Zila Mamede nos anos 50.  Natal, RN: Sebo Vermelho Edições, 2006.  144 p.  14X21 cm. “ Alexandre Bezerra Alves “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

ANDRADE, Carlos Drummond de.  Cartas de Drummond a Zila Mamede.  Org. e introdução de Graça Aquino. Natal, RN: Sebo Vermelho Edições, 2000.  75 p.  14x21 p. “Orelha” do livro por Diva Cunha.  “ Carlos Drummond de Andrade “  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

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           TEXTOS EM PORTUGUÊS – TEXTOS EM INGLÊS

ZILA MAMEDE

Zila Mamede (1928-1985) published six books of poetry: Rosa de pedra (1953), Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975), Navegos (1978), and A herança (1984). She has two posthumous works, the compilation Navegos/A herança (2003) and Exercícios de poesia: textos esparsos (2009). In Natal (RN), she was director of the Central Library at the Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Federal University of Rio Grande do Norte - UFRN) and wrote important researches in the field of Librarianship, especiallly about Luís da Câmara Cascudo and João Cabral de
Melo Neto.

                                    (O Arado)

MAMEDE, Zila.  Rosa de Pedra.  The stone rose.  Edição bilíngue português –
inglês.  Tradutor Alexandre Alves.  Mossoró, RN: Queima-Bucha, 2013.  104 p.  12,5x20 cm.    Inclui errata, ao final.  Edição comemorativa dos 60 anos da obra. Col. A.M

 

FLOR EXTINTA

 

Extinta flor azul na correnteza,

desfeita luz na face transitória

do tempo, voz perdida na memória

em traços, mudas formas de beleza.

 

Sob folhas de mangue acobertada,

extinta flor azul entorpecida

numa corola resta vã, sem vida,

navega na torrente, atormentada.

 

Distantes, já, em sombras liquefeitas

as pétalas marejam sóis, desfeitas

em mil fragmentações, gestos sem cor.

 

Nas brumas, morto caule inconformado

liberto foi de corpo ensanguentado,

perdido corpo azul de extinta flor.

 

 

EXTINGUISHED FLOWER

 

In the flow, dead blue flower,

undone light on the fleeting face

oftime, a Lost voice on a trace

of memory, beaut´s mute manner.

 

Under covered mangrove leaves,

blue flower, numb and lifeless

on a corolla, vain and useless

sails into the flow, ever teased.

 

Ever distant on liquefied shades

petals are weeping suns, they fade

into pieces, gestures without colour.

 

On a fog, a dead stalk in a bad mood

breaks free from a lost body in blood,

blue body of an extinguished flower.

 

 

 

SONETO GEOMÉTRICO

 

Ventre da noite, incesto, cavernoso,

gerando ideia longitudinal.

O frio vento insólito e anguloso

vertendo em gesto azul a flor do mal

 

que vinda foi de rio caudaloso

e após ter sido areia e também sal

fundiu-se logo em ângulo brilhoso

descrito num momento horizontal,

 

por causa de um desejo da neblina

que, pura, quis traçá-lo na retina,

em formas, já, de justificação.

 

Tranquila, a flor do mal purificada

despiu-se, pois, de forma avermelhada

por branco horizontal de redenção.

 

 

GEOMETRYCAL SONNET

 

Night hollow womb, incestuous in,

a lengthwise idea is turning over.

The unusual cold and angular wind

in blue ways pouring out the evil flower

 

which came from a swollen river

and after became salt and sand

blended on a shining angle ever

described on a horizontal instant,

 

just due to a pure mist desire

which wanted to catch it in the eye

in sooner forms of justification.

 

Quiet, the evil flower ever purified

— on a reddish way - got undressed

into a horizontal blank of redemption.

 

 

SONETO DA TUA VINDA ANTECIPADA

 

Chegaste antecipado de mistérios

tendo na face, amorfo, o meu segredo.

Na argila do teu beijo adolescente

trazes canções molhadas de esperanças

 

sobrepairando lábios e hemisférios

onde se oculta, informe, o teu degredo.

Te vejo aproximado e intransparente,

te sinto inatingido de lembranças.

 

Por onde andaste, ó ave de granito,

plantando os pensamentos? Onde a veste

a seduzir-te chamas, branco e espaços?

 

Meus olhos te investiram de infinito

guardando, intato, o amor que não trouxeste

na tarde prematura dos teus braços.

 

 

SONNET OF YOUR ANTECIPATED COMING

 

Soon, you arrived under mysteries

my shapeless secret on your face.

On the clay of your teen kiss, likewise

you bring wet songs of expectancies

 

fluttering lips and hemispheres

where its hidden your exile place.

I see you not so clear but nearby,

I feel you unattained ofmemories.

 

Oh granite bird, where have you been,

placing your thoughts? Where do you wear it

in flames, in white, in space to seduce you?

 

My eyes vested in you with innnity

keeping intact a love you didnt bring on it,

on your arms as a premature afternoon.

 

 

 SONETO PARA O MOMENTÂNEO

REENCONTRO DA PERDIDA INFÂNCIA

 

Não. Esse não, porque esse quadro encerra

os seus limites infantis de outrora

quando plantava as mãos de medo e terra

nos flocos de algodão sujos de aurora.

 

Não esse quadro antigo em que se aferra,

surda, uma dor que uma antes criança chora

perdida no caminho que a desterra

e no pranto que então seus anos mora.

 

Esse não: que ainda busca o procurado

abismo de onde os traços seus, feridos,

surpreendam voz pedindo claros sons.

 

Não essa inútil forma em céu crestado

descolorindo os ecos ressurgidos

nos dedos que inventaram lírio e tons.

 

 

SONNET TO THE MOMENTARY

COMEBACK OF THE LOST CHILDHOOD

 

Not. Not this, because this picture ends

your childish limits of a past time

when you planted hands offear and grains

on the cotton flakes, all dirty of daylight.

 

Not this old picture which holds on tight

a dull ache which a child weeps before

lost on away that takes her out, on a cry

over the years which live therefore.

 

Not this: which it still looks for the tried

abyss from where your traces are wounded,

they surprise a voice into sounds on and on.

 

Not this worthless form on a parched sky

discolouring these echoes on a rise

among fingers which created lily and tones.

 

Versos de Zila Mamede, gravura de Marília Rodrigues

 

MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME I. Rosa de Pedra.  Natal, RN: EDUFRN, 2023.  64 p
(Zila, toda poesia, v.1)  ISBN 978-65-5569-291-4-                    
                                                              Ex. bibl. Antonio Miranda

 

        Mar morto

       
Parado morto mar de minha infância
        sem sombras nem lembranças de sargaços
       por onde rocem as de gaivotas
       perdendo-se num rumo duvidoso.

       Pesado mar sem gestos, mar sem ânsia,
       sem praias, sem limites, sem espaços,
       sem brisas, sem cantigas, mar sem rotas,
       apenas mar incerto, mar brumoso.

       Criança penetrando no mar morto
       em busca de um brinquedo colorido
       que julga ver no morto mar vogando.

       Infância nesse mar que não tem porto,
       num mar sem brilho, vago, indefinido,
       onde não há nem sonhos navegando.



        Frustração

       
O poeta, em verde sonho desposado
       perdeu-se na fumaça, descontente.
       Onde o gesto, onde a musa permanente
       fincou raiz? em solo devastado?

       Palavras. Só palavras. Concentrado
       o pensamento voga, de repente,
       por mares de salina, indiferente
       ao poeta, àquele sonho evaporado.

       Fantasmas de mil coisas na retina:
       um grito azul — nas sombras da neblina,
       inconsequente flor a soluçar.

       Em vestes de loucura embevecida,
       o poeta, a muda face desprendida,
       o morto sonho verde atira ao mar.



        Soneto da tua paisagem interior

       
Para que azul manhã no pensamento
        gerando louros sonhos impossíveis?
       Lá fora o céu já não semeia orvalhos
       e longo, o mar vai sombras sepultando.

       Há corvos devorando a vil matéria
       abandonada a ventos e rochedos.
       O verde não é verde, é triste asfalto,
       caminho vão de inúteis suicidas.

       Até a branca rosa do canteiro
       jaz insepulta em negra lama impura.
       Não queiras desvendar inacessíveis

        segredos pelos vales derramados,
       pois nunca saberás, ó grande inquieto,
       das flâmulas trementes nos penhascos.


MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME II.  Salinas.  Natal, RN: EDUFRN, 2023.  64 p.  (Zila, toda poesia v.2)  ISBN 978-65-5569-298-3-                   
                                                         Ex. bibl. de Antonio Miranda
 

 

        Caminhos  

        Imersos meus pés na fonte
        para os sapatos calçar
       os sapatos se quebraram
       e os somente pés, intactos,
       já não pensam caminhar.

        Sapatos quase vermelhos

       (abril fizera-os de branco):
       Agora dois rostos negros
       conduzem meus pés medrosos
       pelas ruas sem lirismo
       e becos que não têm mar.

        Seis retângulos dispersos
       prendem meus pés matinais.
       As estrelas me libertam
       e meus pés, nus, me acompanham
       nos rios abandonados
       onde flores se envenenam,
       onde, estéreis, meus limites
       vão chegando sem chegar.

       Que cores me aniquilando?
        Que tintas serão meus pés
        no final dessas andanças,
        nas marcas que eu não deixar?

        Tripulantes descompostos
        da vida que não vivi,
        navegam meus pés comigo
        as luas desarvoradas
        e os nortes sem girassol.



         Cais

         Três navios fugindo, três demônios
        do mar fazendo suas montarias.
        Ninguém dizendo adeus, todos chorando,
        eu querendo remar, mas eu ficando

        de bruços nesse cais que não desejo
       pois, loucas, peço as três cavalgaduras
       que pisaram no espelho cal, repolhos
       e encheram seus pulmões de maresia.

        Três demônios velejam satisfeitos,
        três navios mergulham no horizonte,
        e eu nem sequer me faço mastro ou leme,

        nem galopar eu posso três navios
        (à noite, quando as brumas me ferirem)
        presa nas rédeas desses três demônios.



        Poema de viagem


         Na estrada cinzenta e desigual
        o automóvel se abisma.

        Onde, o sono da mulher
        carregando uma criança nos olhos?
        A fala da criança
        ficou dependurada lá fora
        no tempo
        a vestiu as árvores magras,
        as árvores nuas,
        os cactos tristes dos caminhos.

        De tudo,
        durou apenas
        na memória
        a última estrela
        do anteamanhecer.


MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME III .   O arado. Natal, RN: EDUFRN, 2023.  848‘ p.  (Zila, toda poesia, v.3)  ISBN 978-65-5569-299-0- 
                                                               Ex. bibl. Antonio Miranda

                Antecolheita

               
Ah te saber distante, embora a chuva
              amareleça em frutos e a colheita
              não tarde. Já meus dedos se presentam
              como instrumentos à hora matinal.

              Ausentes os teus braços, a charrua
              nega-se à lida, caminhança e bois;
              o cata-vento remudece as hastes
              que calentavam cedo anoitecer.

              Não sei que faça dos celeiros. Vem:
              setembro amadurece nos folhados
              deixando-se nascentes para o estio.

              Vem que me espanta o apascentar das ramas
              e minhas mãos, de frágeis, agonizam
              nessa visão de lavras, de eira e sol.     


               
                Trigal      

               
Por entre noite e noite, essas veredas

                                                                                                                             
               para os trigais maduros me acenando.
               Despertam-se campinas, precipitam-se
               as invenções da luz na ventania.

                Por entre lua e lua, essa querência
               — um resmungar de espigas conscientes
               do retorno às searas, que ceifeiros
               já descerram olhos invernais.

               Planície enlourecendo se oferece
               e um mar desenha nos pendões crescentes.
               Ceifeiros — seus marujos sem navios —

               pescam sementes, riscam no amarelo
               a saudade dos peixes inascidos
               nesse (não mar de águas) mar de pão.



                Um pássaro me hás de dar

                  
Na manhã de pastoreio
                ovelhas apriscando
                largarás de tuas cismas
                e cajado
                que um pássaro me hás de dar
                quando me amares.

                Leve levemente mo trarás
                das fontes dos teus olhos
                sem nenhum pensamento
                sem gesto liberto
                a mansidão do teu silêncio
                apenas.

                 À minha face matutina
                 descerá uma carícia
                 de pássaro
                 pousado.


MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME IV . Exercício da Palavra.  Natal, RN: EDUFRN, 2023.
 80’   ‘ p.  (Zila, toda poesia, v.4)  ISBN 978-65-5569-294-5
                                  -                         Ex. bibl. Antonio Miranda



                MÃE

            
A mulher fia o filho.
             No silêncio do corpo
             inaugura-se: mãe.
             O ventre: curvatura de sol
             levantando-se
             em mansidão de horizonte.
             De si própria se esquece:
             tecelã da rosa que já aflora
             em crescimento lento
             no seu sangue.



                 Poema para Van-Gogh

                 
Amarelo é giro de sol
                voo de canário é
                no outono
                breve giro de lua

                Amo esse amar,
                elo entre a flor
                e o espanto
                agressivo de cor

                Nesse chão de matiz
                a dimensão do mundo
                é síntese e vertigem:
                em girassol explode.



                 Queda de pássaro no asfalto

                 1. Ave

                     arribada

                     salta em

                     cegueira



                     (Ousaram violar

                        o espaço

                         do pássaro)



                       2. Olho afundado no olho,
                       
                           paira no asfalto a queda:

                            em que voo e canto desintegram-se.
   

 

MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUMEV  Corpo a Corpo .  Natal, RN: EDUFRN, 2023.  46 p.  (Zila, toda poesia v.5)  ISBN 978-65-5569-296-9-                   
                                                         Ex. bibl. de Antonio Miranda

 


                Um rio duas vezes

                
a Carlos Drummond de Andrade


                
1.

             Num só-brado
             habitas o corpo:
             nele,
             rio novo
             te precipitas

             Estuário, eis que o corpo
             (na planície da cama)
             selvático
             se rebela
             e te ama.

 

             2.

             Num só-brado
             arrebentas solos:
             neles,
             avalanche
             te precipitas

             Corpo atingido, ágil
             o estuário
             selvático
             todo um delta
             re-clama.




Onde

Entre a ânsia
    e a distância
    onde me ocultar?

Entre o medo
    e o multiapego
    onde me atirar?

Entre ao querência
     e a clarausência
     onde me morrer?

Entre a razão
     e tal paixão
     onde me cumprir?



Caieiras



Memórias há (vão e vêm)
das queimadas de caieiras:
a vida deslembra a gente
da vida que não se tem.
Fumaça assobe na frente
labareda vem depois.
Tijolo e telha cobrindo
a querência de nós dois.

Viola bem assentada
no florir dos cajueiros,
alpercatas batucando
o chão do chão do barreiro,
as mulatas ressurgindo
com seus dengues noveneiros.
As comadres se benzendo
frente ao santo milagreiro.

Aluás somem dos potes,
fogem em risos de tropeiros,
nas prendas dos namorados,
no aboio dos vaqueiros,
na presença do Senhor
da Casa-Grande — o festeiro,
no fogaral projetando
seu calor pelo terreiro.

Caieiras milavoengas,
tijolos: encantação
de caminhos não batidos,
de telha embicada vã,
dos pedregais dos açudes
(sem água), de solidão:
o tempo resumiu tudo
em vida-palavra-chã.


MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME VI.  A Herança.  Natal, RN: EDUFRN, 2023.  56 p.  (Zila, toda poesia v.56)  ISBN 978-65-5569-297-6-                   
                                                         Ex. bibl. de Antonio Miranda
 

 

             Retrato de João Cabral de Melo Neto

              
O gesto de tirar os óculos, de apoiar a testa na mão
             (como para sustar a explosão das ideias e interioriza-se)

             O ricto de autocomiseração (ou zombaria):
             apertar os lábios num sorrisos seco e horizontal de máscara

             O medo do demônio e dos infernos
             e nenhuma convivência com um Deus que seja

             O pavor e o pudor: onipotência e técnica
             de preservar a intimidade dolorosa

             A neurose da aspirina, do relógio e do tempo
             como se o instante último fosse necessariamente aquele

             O desejo de amor, a recusa do amor, o pecado do amor
             e a casuística fidelidade ao próprio amor

             A missão, a omissão e a ousadia da distância
             na rotineira ausência, intempestiva presença

             O degredo e o segredo na tortura
             pela aspereza da dor invulnerável

             A necessidade de confirmar se se “compreende!”
             o debate, a fluição, a lucidez

             A dialética e a disciplina do poeta
             e o preconceito atávico da casta

             O compromisso ascético com a palavra:
             salvação e danação, perdição e deificação.
               

 

 

                Hermelinda no espelho

                 
O rosto exige unção de creme nutritivo
               textura de loção hidratante
               sedosidade de sabão adstringente

               O rosto seleciona cores de potes, 
                  formatos de tubos e de frascos
                na concordância das embalagens

                que se oferecem em fiteiros e vitrines
                — o chamariz harmônico e ofuscante
                do gás néon, luz fria, candeeiros

                Espelhos salientam abusivos olhos
                pincéis acentuam a descritiva sensual dos lábios
                dedos massageiam impiedosas geometrias de
                 pescoços e colos

                 Sacralizados em banheiros e termas
                 multíplices cosméticos realimentam
                 as vibrações do rosto que exorciza o tempo.

 

 



Página ampliada e republicada em outubro de 2023

 

 

Página publicada em agosto de 2020

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