Canto 15
DESMEMÓRIA
Não sabemos se os mortos
(ainda)
governam os vivos;
país sem heróis
-amnésico-
não frequenta os cemitérios
embora invoque espíritos
errantes.
Canto 16
MARE CLAUSUM
“A América e o Brasil foram apenas “achados” nas datas
oficialmente comemoradas, pois seus verdadeiros descobridores,
cumprindo o juramento feito, tiveram o cuidado de não revelá-los”.
FERNANDO PINTO
CABRAL
I
O Tratado de Tordesilhas
(a 7 de julho de 1494) dividia ilhas
e terras ainda por descobrir
ou já descobertas...
(Antes e depois!!!...)
entre os católicos e apostólicos
reis de Espanha e Portugal.
Nada mal. O Papa Alexandre VI
deixava de fora das conquistas
os hereges protestantes.
Pois, pois.
Existem tantas versões e revisões...
Haveria um outro acordo, secreto
para interpretações mais seguras?
Afinal, quem descobriu a América?
Espanha ou Portugal?
Para mim, tanto faz...
II.
S.F.Z.
Era Colombo genovês, catalão ou português?!
A resposta, se houver, não me garante
o pão e o feijão no fim do mês...
A história é controversa
podemos mudar de conversa...
Para o poeta interessa
mais a pergunta do que a resposta
esta posta ao historiador...
Se eu tivesse que (ou pudesse) escolher
o nome do Redescobridor da América
ficaria com o meio-judeu
— helenista, cosmógrafo, hebraísta —
SALVADOR FERNANDES ZARCO
filho bastardo do
Infante Dom Fernando de Portugal.
Cristão-novo
espião português, tido por genovês
a serviço dos Reis de Espanha!!!
Habituado a se chamar
- uma confusão tamanha!!!-
Cristovao Colombo
Cristovam Colom
(Cristóforo Colombo)
Crhistofom Colom
Christofon Colom
Cristóbal Colón
em grafias e regalias
palacianas.
Nunca jamais assinava o próprio nome...
Usava sigla e monograma
pra autenticar cartas a reis
aos amigos e aos filhos...
O monograma, decifrado
combinava as letras S, F., Z...
Salvador Fernandes Zarco.
III.
OVO ERECTUS
Salvador Fernando Zarco era
capaz de convencer almirantes
por ser culto e experimentado marujo
salvo a nado de batalhas
ousado e, sendo fidalgo, de chegar
à presença de reis e poderosos
— o que um tecelão genovês
que nem a língua pátria sabia
certamente não conseguiria....
Ele vendeu a hipótese convincente
— com a obviedade de um ovo —
de ir ao Oriente pela rota do Ocidente
(mas, em vez da Índia, chegou ao novo mundo...)
[Sempre a serviço do rei de Portugal...]
Às terras descobertas
dava denominações encobertas...
Nomes portugueses, com certeza...
Na Spaniola, onde aportou, encontrou
nativos “brancos como em Espanha”
e que já conheciam as caravelas...
IV
DESPISTAMENTOS
À primeira ilha encontrada
deu o nome de Salvador
— supostamente dedicada a Cristo...—
mas Salvador era o próprio nome
— certamente — de Cristovam...
À segunda denominou Fernandina
— homenagem ao Rei Fernando, de Castela? –
mas Fernando era o próprio pai ...
À terceira deu o nome de Isabela
— para honrar a rainha Isabel? —
mas Isabel Zarco era a sua mãe...
A quarta recebeu o nome de Juana
— homenagem a Dom João II
seu primo e cunhado
e seu verdadeiro soberano?
Por ser tão óbvio, no seu Diário
mudou o nome para Cuba
— sua terra natal, no Beja.
Posteriormente, mudou definitivamente
para Longa, com cuidados...
Spaniola era a Península ibérica
e não apenas o nome de España...
Spaniola, um diminutivo, bem podia
referir-se a Portugal...
Alfa e Omega – já existentes em Portugal
eram também símbolos hebraicos...
Belém, Assumpción, Buena Vista
tinham ascendências lusitanas...
Por pouco não colocou Nova Belém...
E até Brazil – porto da Spaniola...
Brazil era já, então
uma das ilhas dos Açores!!!
E que dizer de Curaçao
— ou Curação, pelo fato de curar ali
os marinheiros vitimados
pela maldição do escorbuto...
Faro, Galera, Graciosa
Morón, San Jorge, San Luiz
San Nicolas, Santarém, Guinchos.
Deu apenas nomes portugueses
— disfarçados — a toda a toponímia...
V
ENIGMA
Que projeto realmente perseguia?
Se realmente queria
cristianizar os indianos
por que não levava missionários
em sua tripulação?!
Perseguia o intento
de encontrar povos hebreus desterrados?
[Já então havia referências
a índios circuncidados
e com nomes hebraicos...]
Por que levava um intérprete
hebreu a bordo?
Teria dado o nome de América
em homenagem a Américo Vespucci?
Pouco provável, sendo Salvador
(ou Cristóvão...) seu superior...
Mas havia uma tribo visitada
em 1502, que ele reportou... – Americ
ou Amérique... – em seu regresso.
Zarco, vulgo Colombo, passou
oito dias em Portugal
antes de regressar à Espanha...
Estranha ousadia... Visitou
e relatou ao Rei D. João II
sua viagem às Índias Ocidentais...
O soberano português, depois
considera-o “especial amigo”
em carta enviada a Sevilha.
Que amigo descobre um continente
para o inimigo ou concorrente?!
Canto 17
O VERDADEIRO ACHAMENTO ?
Ano Santo de 1500.
Eram quatro caravelas
como as de Cristóvão Colombo
em demanda de Cathay e de Cipango
das especiarias do Oriente.
Mapas incertos, rotas imprecisas.
“Nasceu uma terrível tempestade
de ondas e turbilhões de vento”...
vagalhões ciclópeos, ventos uivantes
depois de cruzarem o Equador,
a Estrela Polar e seus desígnios
tenebrosos. Mare-magnum.
Vicente Yánez Pinzón
capitão da Coroa de Castela
descobre as praias desertas
depois dos embates do mar.
Costa alta e verdejante
mar adiante
com seus contrafortes azuis,
depois das águas turvas
em alta mar...
Aonde chegaram os marinheiros
errantes? Aquém ou além das Tordesilhas?
A que paragens desconcertantes?
A Pernambuco ou, antes, ao Ceará
ou quem sabe ao Amapá?
Nem havia Pernambuco, nem lugar
algum por reconhecer,
eram terras de nomimar.
“Santa Maria de la Consolación”
foi nome de batismo
das terras por conquistar
ao norte do Cabo Orange
ou seria na Ponta do Mucuripe
quem sabe no Cabo de Santo Agostinho...
Apenas pegadas na areia
e fogueiras à distância.
Sobreveio o enfrentamento
entre nativos (potiguares?) e espanhóis;
diz-se que eram os da terra
ferozes e arredios
ou que resistiram
“com grandíssimo ímpeto”
ao arresto e ao sequestro...
Singrando mares
costa avante
enxergaram um monte
“vermelho bico de cisne
mergulhado no oceano”
depois de rezarem por seus mortos.
Mais adiante, aportariam
“às terras felizes pela fertilidade do solo”
habitadas por “gente mansa e sociável
mas pouco úteis” por não ostentarem
riquezas...
Encontraram as águas
que adoçavam o mar aberto
região de Marantiabal
— o futuro Amazonas, do Orellana —
que Pinzón denominou
Santa María de la Dulce Mar.
Àquelas praias remotas
àquelas vastidões desconhecidas
àquelas muralhas verdes coroadas
àqueles estuários mansos-ermos
chegaram as naus do achamento
e do encantamento.
O fim do episódio
ou o começo, se se quer,
foi a coleta de aves,
de animais e de plantas
(embora almejassem o Eldorado)
e a escravidão dos gentios
—“povos nus, mansos e pacíficos”-
que chega aos nossos dias.
Canto 18
MARES NUNCA DANTES...
Até onde chegaram os descobrimentos
portugueses desde a Escola de Sagres
em tempos do Infante Dom Henrique?
Que sigilo encobria
périplos e circunavegações
daquelas viagens exploradoras
sob o signo da Ordem de Cristo?
Teriam os portugueses
DIOGO DE TEIVE
e PEDRO VASQUES
— conforme o testemunho
insuspeito de Fernando Colón
— filho do Cristóbal Colón!!! —
chegado às terras americanas
em 1452, quarenta anos
antes do Descobrimento?!
Seja verdade ou fantasia
— apesar das provas documentais —
O Tratado de Tordesilhas
negociado, favorecia Portugal...
Garantia a navegação exclusiva
no litoral africano para as Índias...
(às verdadeiras, por suposto...)
Seria a história invertida?
Portugal teria descoberto a América
e os espanhóis o Brasil?
Ou estaria o Brasil nas rotas dos descobrimentos
portugueses (secretos) que o Tratado de Tordesilhas
viria depois legitimar?
Em que versão acreditar?
Então, Cabral viria apenas confirmar
o que já era sabido...
(e “se tinha mais que simples indícios”...)
o que já estava garantido...
“Um fato perfeitamente voluntário”
assevera Fidelino de Figueiredo.
Teria vindo “descobrir” apenas
para completar a encenação?
[Afinal, o Tratado de Tordesilhas
reservara para Portugal aquela
área desconhecida..
E a defenderam com tanta artimanha
na partilha com a Espanha...
Portugal levou para a barganha
cartógrafos experimentados
enquanto a Espanha mandara
letrados e clérigos emplumados...]
Surpreendente a naturalidade com que
o escrivão da frota participou ao Rei:
nenhuma palavra sequer de espanto
a resplandecer o regozijo
pela inesperada fortuna...
confirma Pedro Calmon.
A carta de Caminha
não demonstra nenhum espanto...
Que encanto teria mudado a rota
de quem conhecia os caminhos?
Era apenas um álibi, um lorota
para enganar os vizinhos?
Canto 19
HOUVEMOS VISTA DE TERRA
Reiteramos: nenhum espanto naquele santo dia
em que divisaram sargaços
e o pedaço saliente de um continente
(possivelmente) redescoberto:
acharam um território previsto
e (já) concedido no Tratado de Tordesilhas.
Nenhum assombro no discurso de Caminha
ao seu rei Dom Manuel
— apenas um desvio de percurso
até àquele rio em sua embocadura
como quem toma posse
ou lavra escritura do que já era seu.
Em vez de Descobrimento
apenas o documento de posse
e seu sacramento em missa campal
e início de povoamento
para “cuidar da salvação”
daquela gente de Santa Cruz
ou Pindorama.
Pura formalidade
pois a verdadeira finalidade
era a rota das especiarias:
às Índias
destino final da viagem
de Pedro Álvares Cabral.
Canto 20
OS PRIMEIROS DEGREDADOS
Afonso Ribeiro, mancebo desafortunado
foi o primeiro degredado
entre o gentio da terra
para “saber de seu viver e maneira”
mas é mais de uma vez rejeitado...
Mas ficaram em terra nova
dois condenados
e dois grumetes foragidos
de quem não mais se ouviu falar.
Somos todos descendentes
desses pobres desgraçados?
Seriam meus/nossos retroparentes?
De que genealogias emergiram?
Que erro, que crime cometeram
— sacrilégio, perversão —
para sofrerem tal desterro?
E os grumetes
preferiram o paraíso?
Canto 21
DEGREDADOS
Desertores, degredados, náufragos
e outros homens abandonados
deambulando pelas trilhas litorâneas
personagens solitários, marginais
povoadores sem alternativa,
traficantes.
Por onde andou Caramuru?
O que fazia João Ramalho
suposto fundador da Paulicéia
pelos desertos da Cananéia?
A que senhores serviam?
Teriam sido polígamos, acaso
traidores de duas pátrias
escravagistas, incréus, cruéis?
Aleixo Garcia atravessou (mesmo?)
o continente em busca de riquezas
dos incas altiplanos?
Havia mesmo planos
ou eram sonhos, delírios
nas Entradas e Bandeiras?
E o sangue/seiva daqueles
aventureiros? Os primeiros brasileiros
(ou seus pais) na mestiçagem fundadora
de nossa identidade. Hexa, penta
tetra-avós de nossos avós paternos?
Canto 22
NUDEZ E CATEQUESE
“tomam tantas mulheres quantas querem”
AMÉRICO VESPUCIO
I
As matas eram nuas
e nuas as praias e as serras.
Puras, limpas, inocentes.
Nuas as índias e suas crias.
Não havia pecado
nem vergonhas
e maldades
no despir
e exibir corpos
e intimidades.
II
Ímpias, impuras, indecentes!!
O pecado aportou
com os religiosos
e seus preceitos morbosos
gerando preconceitos.
Homens vestidos, armados,
suados, fedidos,
considerando lúbricos
aqueles corpos limpos,
lavados
e dourados
pela liberdade.
Logo ultrajados, possuídos
e escravizados
enquanto se discutia a tese
— res-nullis: uma coisa
e não uma pessoa —
de serem ou não humanos,
se se podia
humanizá-los pela catequese.
Canto 23
INVENÇÃO DO BRASIL
Nu e pintado a jenipapo
com tatuagens e por alegorias
Martim Soares Moreno
simboliza a Invenção do Brasil.
Deixado para aprender a língua
e familiarizar-se com os costumes
o jovem é logo assimilado
e regride à condição da barbárie:
— esta a versão do colonizador.
Protegido de Jacaúna, cacique potiguar
acompanhado de dois soldados
estabelece uma fortaleza no Ceará;
pela procriação e miscigenação
dá início a uma nova civilização:
— esta a visão de José de Alencar.
Martim “barbariza-se” para “civilizar”
no dizer analítico de Ítalo Barbieri:
vira personagem do nativismo romântico
em Iracema, uma lenda cearense
(a virgem dos lábios de mel)
na fundação do Romance brasileiro:
e aqui faz parte do Cordel.
Canto 24
POVOAMENTO E CRUZAMENTO RACIAL
Viver com muitas mulheres
— brancas, negras, índias –
podiam os bandeirantes
os senhores-de-engenho
os militares e — por que não? —
ainda que por exceção
também os clérigos
em seu ardoroso empenho
de prazer e povoar.
Pois a terra era vasta e vazia
e havia que multiplicar
e garantir a serventia.
Uma poligamia enrustida
(de linhagens mozárabes
ou de origens tupiniquins
correndo nas veias)
culturalmente consentida
como moeda corrente.
Uma poligamia dividida
entre o refúgio social
da casa-grande
e o subterfúgio da senzala.
Mulatos, cafuzos, mamelucos
numa multiplicação sincrética
e geométrica avançando
e povoando sesmarias.
Havia naqueles cruzamentos
interraciais
de classes sociais distantes;
naquela fornicação descarada
protegida pelos estamentos;
naqueles coitos sem os devidos
sacramentos
um pacto de silêncio
e de não reconhecimento.
Filho de branco com negra
o que era: era negro.
Filho de branco com índia
o que era: era índio
e virava propriedade.
E podia o dono vender
ou esconder sob o manto
protetor
sem nenhum espanto
ou pudor,
a prole.
Até mesmo tê-los como filhos
adotivos
e educá-los
ou domesticá-los como servos
sem nenhum embaraço.
Tudo podia ser
naquela bastardia que a lei
protegia pela omissão
e que a religião ignorava
quando nada podia fazer.
O resultado já sabemos:
a morenidade de uma meta-raça
— base de toda diversidade
de nossa unidade racial
origem de nosso sincretismo
e a capacidade final
de nossa santidade
sem nenhuma beatitude.
Canto 25
A AMPULHETA
“só o trabalho livre” (...) “satisfaria
os anseios de colonização do Brasil”.
OSCAR CANSTATT (1871)
Dois Brasis contrastavam
na hora da Independência
— um, ao norte, aristocrático
mantendo privilégios coloniais
e a escravatura
— outro, mais pobre,
no sul
aberto ao trabalho livre
pela imigração.
Que impedia, então
acabar com a escravidão
a exemplo das repúblicas vizinhas?!
Coloca-se a culpa na Monarquia...
Quem tinha escravos e benesses
eram os membros do Parlamento
(desde então e desde sempre...).
Qual a razão do contraste
que levaria ao desastre
da inversão da ampulheta
da História?
Canto 26
O DUETO MONÁRQUICO
Ele, um garanhão católico libertino
e mandão, industrioso e mesmo cruel.
Ela, luterana inconformada
em terras de ousadias consentidas
e de tantas degenerações acobertadas.
Ele, liberal (ou amoral?)
em seus excessos e caprichos.
Ela, infensa aos mexericos
e indefesa nos constrangimentos.
Unidos em matrimônio numa aliança
de duas dinastias
de emblemático apelo
representado na Bandeira Imperial:
verde da casa de Bragança de D. Pedro
e amarelo da casa Lothringen-Habsburgo
cores que persistem até hoje
no Pavilhão Nacional!!
Canto 27
A IMPERATRIZ LEOPOLDINA E OS IMIGRANTES
“gentalha rota (...) muitos mal logravam encobrir a nudez...
(...) bêbeda a maior parte destes maltrapilhos e
vagabundos”.
EDUARDO THEODOR BOESCHE (em 1825)
Sem graça, varonil, calças rústicas
com botas e maciças esporas de prata
a Imperatriz luzia o garbo dos Habsburgo
a cara vermelha, os olhos azuis
de sua raça.
Moscas sobrevoando a cabeleira nobre
o suor ardido, os urubus ao largo.
Vermelha, sim, mas não do clima
— dizia-se, então, na corte —
por algum tipo de cachaça...
ou pelos destemperos do afoito consorte
acobertado por algum chalaça.
Cascos faiscando pelo pedregulhos
e fezes adubando o percurso imperial
— do paço ao litoral para inspecionarem
o Wilhelme em sua chegada ao porto
com seu carregamento de colonos.
A Imperatriz e os conterrâneos
imigrantes
a servir-lhes de intérprete.
O intrépido Pedro I, dentes alvos
cabelos anelados, olhos arredios:
admirado pelos contemporâneos
transeuntes e forâneos.
“Sua imperial pessoa como medida”
costa com costa, comparando-se
e selecionando os mais altos
e endereçando-os para São Leopoldo.
A Imperatriz e sua (pretensa)
empresa civilizadora
em colônias de sua inspiração
— pela liberdade de culto
e devoção e pela pujança
daquela terra prometida.
Esperança e redenção.
Canto 28
O IMPERADOR PEDRO I E AS MILÍCIAS
“seus modos eram grosseiros, faltava-lhe
o sentimento das conveniências”.
EDUARDO THEODOR BOESCHE (em 1828)
No Wilhelmine vinham também
assassinos e ladrões algemados
homens rudes mas bem formados
pela natureza
escolhidos
para os batalhões de caçadores
granadeiros e toda milícia
— pelo porte e resistência.
Sujeitos logo a exercícios excessivos
à lascívia, à má alimentação
e desconfortos
e ao uso frequente da chibata
— Imperador em pessoa açoitava.
(“E pegando-os um a um pelo topete,
Passou-os todos a chicote”)
Condições humilhantes, deserções
Suicídios, aleijões e bebedeiras constantes
Rebeliões, desordem, amotinamentos.
Pagamentos atrasados, desespero
— denuncia o cadete Boesche.
Batalhões de irlandeses, caçadores alemães
ingleses e marinheiros franceses:
rixas e enfrentamentos frequentes
saques e estupros, mortes de civis
e civis massacrando soldados.
Quebras de hierarquia, prisões.
Anarquia.
O comandante Ewald, bêbedo
fez “desfilar a tropa em ordem
de marcha” frente ao jardim da casa
de uma rameira
e atou à bandeira do corpo militar
a liga azul “da Gertrudes”...
na parada do Campo de Santana...
“Levaria longe descrever os excessos
ocorridos”.
Baste-nos o desabafo do jovem Boesche:
“Todo sentimento de direito e equidade se some,
em se tratando de proveito”:
Não se pode fazer ideia da malvadez
e perversidade da maior parte
dos europeus nos continentes estrangeiros”....
Paixões selvagens envenenam o sangue
(...) revelaram uma crueldade e baixeza
de espantar o selvagem.
Canto 29
POEMA COM RODAPÉ
“corte provinciana formada de parentes,
aderentes, parasitas”.
JOAQUIM NABUCO
Os dedos engordurados* de D. João VI
as alcovas suorentas** de D. Pedro I
— nossa monarquia transplantada
ou foragida, depois repatriada.
Dom Pedro de Alcântara
“conquanto não fosse bonito, tinha aspecto
agradável, e estatura harmônica. Sobravam-lhe
à fonte bastos cabelos negros e anelados,
olhos escuros e brilhantes saltitavam”...
(na descrição do jovem Boesche)
assim luzia aquele que viria a ser
o soberano de sois continentes.
Teve o dia do fico
e o do vou m´embora
para salvar as coroas
d´aqui e d´além mar.
Teve o Imperador-menino
Dom Pedro de Alcântara Francisco Antônio
João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael
Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano
Serafim de Bragança e Bourbon
apaziguando as desavenças
depois Velho de Barbas Brancas***
mecenas das artes cênicas
da Grande Era Exemplar:
moderando a Monarquia Parlamentarista.
* porque não lavava as mãos
e para assear-se, valeram-se de um artifício:
construíram uma casa de banhos em São Cristóvão
a pretexto de curas dermatológicas...
** impetuoso, mulherengo, fogoso valia-se
do Chalaça para orgias de todos conhecidas...
*** efígie em selo do Correio imperial.
Canto 30
A REGÊNCIA TRINA
Com a abdicação do Imperador
foi o Brasil entregue aos brasileiros
em Regência:
o Marquês de Caravelas
o Visconde de Magé
e Campos Vergueiro
em triunvirato:
um ato republicano
disfarçado de monárquico...
Quem diria, o português D. Pedro
era o mais brasileiro de todos
— intempestivo e impetuoso
(se pudesse, incestuoso)
e festivo.
Os partidos surgem dos quartéis
como ratos das sepulturas:
exaltados, moderados e conservadores
em meio a levantes e sedições
— soldados expulsando oficiais
e oficiais depondo comandantes
— a mon(an)arquia.
Como sempre, vieram as anistias
e tudo volta a ser como antes
nas sacristias
e nos clãs dominantes.
Monarquia republicana
— com presidentes na províncias —
e fidelidade ao Imperador-menino
na maioridade antecipada (1840)
para conter a bagunça
e assegurar a pacificação...
Continuidade da regência eletiva
e democrática...
mais efetiva e democrática
que a dos republicanos sulistas.
Haveria mais monarquismo pessoal
no caudilhismo dos pampas
do que na pantomima
da Quinta da Boa Vista.
Alguém entendeu?! Nem eu.
Canto 31
DESTERRO
Na Ilha de Santa Catarina
nas ruelas do Desterro
no calçamento coberto de capim
onde cavalos e muares pastavam
Oscar Constatt (1871) constatou
condenados “presos dois a dois”
acorrentados, com seus uniformes
azuis e guarnições encarnadas.
Sem as condições necessárias
“à regeneração moral dos delinquentes”
emparelhados, expostos como indigentes
e em condições humilhantes:
“ficam cada vez mais calejados
moralmente” degredados.
Lotados em ilhas e fortalezas
sem os mínimos cuidados
agrupados promiscuamente
sem “ter em vista a duração
da sentença” e a natureza dos crimes
ou então
fugindo e desaparecendo
pela falta de vigilância.
O que mudou desde então?
Canto 32
A BANDEIRA IMPERIAL
Solano López usava
a Bandeira Imperial brasileira
como tapete
(uma afronta!)
— hoje, repatriada, virou relíquia
no Museu Histórico Nacional.
A Guerra do Paraguai
seria uma infâmia
contraposta à insânia de sua deflagração.
A História é mesmo dos vencedores
carregando em seu andores
ardores de sublimação transfigurada
— pátria amada idolatrada!!!-
na coleção do Museu
na memória pública
do interesse privado.
Havendo erro de cada lado
o que resta
é a Bandeira reconquistada
se é que ela presta
se não fora fabricada lá mesmo
ou importada.
Tanto faz...
livre da afronta e do insulto
jaz a nossa bandeira imperial
depositada para seu culto
— e valha tanta besteira! —
já que a História
não é só feita de glória.
Canto 33
CANUDOS
“das ondas do mar, São Sebastião sahirá...”
ANTONIO CONSELHEIRO
Delírios, desvarios, martírios.
Multidões delirantes
pelas estações alcalinas
das prédicas redentoristas
pelas caatingas dilacerantes.
Práticas ascéticas
de atavismos vingadores
de ancestres persecutórios
das visões proféticas.
Pervagando, sitiadas
perseguidas
hordas peregrinas.
O Emissário em seu calvário
Ambulante,
o Apóstolo do apocalipse
pelo manicômio
delirante
em seu vaticínio
em seu encômio
em sua insânia.
Canto 34
ANTONIO CONSELHEIRO
“rosto tumefato, e esquálido,
olhos fundos cheios de areia”.
EUCLIDES DA CUNHA
O cajado perdido, os trajos hediondos
e o sudário-mortalha do homem vencido
depois de uma batalha sem depois
depois de todas as mais vis batalhas
em que todos os corpos dos combatentes
(ou seriam penitentes, renitentes fiéis)
obstinados foram, um a um,
sacrificados.
Em andrajos, pestilentos, famintos
abatidos, mesmo os mais velhos
e as crianças, foram todos imolados
todas, todas as casas derrubadas
— que não fique pedra sobre pedra
onde medra o vil messianismo!
Restaure-se a República em território
de heresias e cismas e loucura.
A cabeça do Conselheiro
decepada.
A caatinga emudecida
e humilhada
em sua vastidão
aviltada e entristecida.
Mas o sertão há-de virar mar
e Dom Sebastião há-de ressurgir
no milagre da restauração
de nossa monarquia
celestial e de nossa
idolatria terrenal.
Canto 35
RUI, A FOGUEIRA E O MAR
I
Queimaram, Senhor, incineraram
numa pira ensandecida e solerte
nas chamas de um opróbrio
(palavra correta para o incorreto)
na fogueira dos despistamentos
“todos os papéis, livros e documentos
existentes nas repartições”
do Ministério da Fazenda
sobre o tráfico negreiro.
Para apagar a memória oficial
de uma ignomínia, uma infâmia
que sobreviveu à própria Abolição
que persiste nas nossas entranhas
e que reaparece, rebrota, reverbera
e violenta a nossa consciência.
Rui Barbosa, o ordenador
da queima de arquivos.
No incêndio culposo, as almas
dos condenados
nas labaredas, as agonias
dos penitentes
crepitando, gritos
lancinantes
seres aflitos abrasados
— sentimentos no queimor
de negritudes crestadas
tecidos tostados e ossos
tisnados, carvões
de cremações renitentes
persistentes.
Como se a centelha apagasse
“o porão negro, fundo
infecto, apertado, imundo”
d´O Navio Negreiro
de Castro Alves.
Como se as fornalhas ardentes
como mares incandescentes
borrassem a lembrança
daquelas temeridades.
“Ó mar! por que não apagas
Co´a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?”
— clamor do poeta baiano
que o ministro soteropolitano
escutou...
II
Uma irreflexão, uma leviandade
uma aleivosia.
Por quê?! Por quê?!
Documentos fiscais
podiam ir a tribunais
em pleitos de ex-senhores
por indenizações.
[Não se apagam os resquícios
da covarde escravidão
destroem-se os vestígios
legais da propriedade servil!]
Na queima
de certidões
as sub-reptícias
intenções...
Pela honra da pátria
em defesa do estado...
III
Nas cinzas
do fogaréu patriótico
na ardência de um mea culpa
emulado em todos os Estados
num expurgo aclamado
pela imprensa
com as congratulações
e moções dos congressistas
signatários de fervores
exorcistas.
Daí vem a nossa desmemória
Senhor, de um povo sem história
(a salvo de vergonhas esquecidas)
sem heróis, sem glórias passadas.
Em vez de indenizar os escravos
pretendia-se ressarcir
os escravocratas.
Até o abolicionista Joaquim Nabuco
— estaria caduco? — em sua representação
pedia a inutilização dos livros
e registros “para que, em tempo algum”
servissem à pretensão das indenizações
num arrazoado assim precipitado
ou eivado de boas intenções...
No indeferimento
do pedido de socialização das perdas e danos
Rui, constrangido, reconhecia:
“mais justo seria
e melhor se consultaria o sentimento
nacional”, indenizar os ex-escravos
mas — lógico — sem onerar o Tesouro...
Dívida que ainda não pagamos.
Canto 36
CAXIAS, UMA BREVE NOBILIARQUIA
Luis Alves de Lima e Silva
sentou praça em 1808;
regressou da Bahia capitão.
Da campanha do Sul voltou major.
Já coronel foi pacificar o Maranhão
das balaiadas bem-te-vis.
Considerava “a guerra
uma calamidade pública”
mas entendeu ser também
“um meio de civilização para o futuro”.
Como barão de Caxias combateu
sublevações em São Paulo e Minas Gerais.
Elevado a marechal-de-campo
e mandado a combater separatistas
(de “exageradas ideias”)
tornou-se conde e senador.
Depois de combater Rosas
é elevado a marquês e tenente-general.
Derrotando Solano Lopes no Paraguai
torna-se Duque de Caxias
e Ministro da Guerra
(depois que as guerras acabaram).
Garantiu o Império
mas o Império o traiu.
Foi um militar
mais que um político
no seu entendimento.
Rejeitou honras e pompas oficiais
e “quis ser enterrado como
obscuro paisano”
escreveu Capistrano de Abreu
— morreu a 7 de maio de 1880
depois de lenta agonia.
Canto 37
O BAILE DA ILHA FISCAL
Ao último baile do Império
veio o Silvério dos Reis
e veio o Inconfidente
(de enforcado e penitente)
com outro mascarado
— talvez o padre Anchieta
de muleta e o poeta Gonçalves
Dias como índio romantizado.
Veio Arariboia dos confundós
de Niterói e veio o herói
da Batalha de Riachuelo
da mortalha, arrependido;
veio a Chica da Silva fantasiada
de senhora de engenho;
vieram os Andradas redivivos
e os confederados e as criadas
das decadentes fazendas de café.
Vieram a pé os jesuítas
e os sibaritas maçons
(antes inflamados monarquistas
depois travestidos republicanos).
Veio Caminha de carruagem
como cronista social
e até o Barão de Mauá
de trem, com a Marquesa de Santos
acompanhando o Maurício de Nassau
e mais ninguém, para deixar espaço
aos oficiais chilenos — e as mulatas!
Depois do baile, o Monarca
foi de navio para a Europa
com uma pensão vitalícia
e começou para valer
o Carnaval da República.
Canto 38
SI HAY GOBIERNO, SOY CONTRA
“democracia sem povo, sem cidadãos”.
MANOEL BOMFIM
O mais radical de nossos pensadores
— publicou su´A América Latina em 1905 –
foi o médico e educador Manoel Bomfim.
Quase um anarquista, quase um marxista!
Um socialista contra o liberalismo econômico,
um antiimperalista
contra a hegemonia europeia
e a dos emergentes Estados Unidos da América.
O mais original de nossos historiadores
ao denunciar a nossa herança colonial:
o parasitismo do Estado e das elites
como o mal a sugar a riqueza nacional.
Diziam ser contra tudo e contra todos
— em favor dos vencidos e dos oprimidos —
contra o Estado e contra a livre iniciativa.
Quem ouviu falar dele e de sua obra?
O Estado só serve para cobrar impostos...
Como opressor, em favor dos prepostos...
Combateu o positivismo, o evolucionismo
e o racismo, e qualquer determinismo
biológico, a supremacia do mais forte,
a mais-valia dos apoderados
e o darwinismo mal interpretado...
Pregou a educação e a reeducação
para a superação do atraso nacional,
mas
desiludido e combatido, afinal
acreditou numa única saída:
a REVOLUÇÃO
— nunca a de Getúlio, que ele combateu,
cujas contradições e retrocessos
denunciou.
Manoel Bomfim, um sergipano.
Canto 39
OS DONOS DO PODER
“construir a realidade a golpes de leis”.
RAYMUNDO FAORO
Que país é este? — pergunta-se —
a que estamos atrelados, condenados?
Que atavismos, que arcaísmos,
que caminhos enviesados
— de um capitalismo de Estado
privatizado pelos donos do poder.
“Estado patrimonial e estamento burocrático”
num suceder efetivamente errático,
persistentemente aristocrático.
A dominação
Ttadicional tornou-se patriarcal
(weberianamente) entendida
e apropriada pelo quadro administrativo
com os mecanismos judiciais e militares
de sustentação.
Estrutura eterna de tutela e sujeição
que cinde o Estado e a Nação
e prescinde da iniciativa
e tolhe a liberdade de ação.
Manietando a sociedade
à ausência de uma economia
racional
desvirtuando o capitalismo (???)
criando a serventia e o favorecimento
em detrimento do social.
Modernidade ornamental.
De quem é mesmo este país
se da gente ele não é?!
Canto 40
O PARADOXO DO CORONELISMO
“o coronelismo falseia a representação política
e desacredita o regime democrático”
VITOR NUNES LEAL (1948)
O coronelismo — uma praga,
um cancro, um abcesso — sobrevive
e se renova na vida republicana.
Tem origem no patriarcalismo
— o patriarca isolava-se para produzir
e ajudava a manter a monarquia.
Mas, o coronel, o que seria?
O patriarca virava barão
e explorava terras, escravos
plantações e rebanhos;
o latifundiário vira coronel
em terras improdutivas
arrebanhando votos e favores.
Patriarcas e coronéis
são senhores feudais
em domínios coloniais.
O coronel atua (explícito)
no cenário local,
no município de base rural
mas — sub-reptício — projeta-se
na vida política nacional.
O coronelismo é, afinal,
o poder privado sobreposto
ao interesse público
pela ausência de governo
e anuência ao mando pessoal
atribuindo-lhe faculdades tais
(além de pessoais, imorais)
pela insuficiência do poder estatal.
Onde o “coronel” institui-se
no interior desprotegido e submisso
pelo dever omisso e subtraído,
pela ignorância, a miséria, o abandono.
O paradoxo: o coronelismo
é a extensão do direito do sufrágio
que sustenta a política rasteira
pelo privilégio do voto obrigatório
e universal ao analfabeto
— que o coronel intermedia...
Estágio de uma cidadania passiva,
distorção da própria democracia
pelo voto de cabresto, de curral
— rebanho eleitoral.
Vendendo, comprando
trocando votos cegos
— eleição a bico-de-pena,
listas, cédulas, urnas eletrônicas —
votos tão secretos
que nem se sabe
em quem se vota...
Regime representativo do quê?
Influência política dos donos da terra
na eleição fraudulenta
violenta, flatulenta.
Composição escusa, espúria
— expediente da República Velha —
sustentou a Nova República
as eleições atuais e as que virão
com represálias aos oposicionistas
e favoritismos para correligionários.
Criam-se mais e mais municípios
sem contudo emancipá-los...
sujeitá-los aos recursos externos,
torná-los eternos dependentes
do coronel, das verbas federais,
dos políticos, assistencialismo
de bolsa-isso e bolsa-aquilo
que garantem o conservadorismo
e o centralismo de qualquer governo
e, no decurso, só cultiva o poder.
Canto 41
PARTIDOS-REPARTIDOS
O Positivismo era a unanimidade
entre civis e militares
no Império do Brasil,
mas eles estavam divididos
e aguerridos
(quando não estavam mancomunados).
No regime monárquico
(democrático e escravagista!)
o Imperador era suprapartidário
com posições libérrimas
em seu poder arbitrário
sobre as disputas acérrimas
entre conservadores e liberais
entre generais e civis.
Depois das fronteiras defendidas
definidas e pacificadas
as espadas, enfim, ensarilhadas,
vem a malfadada Questão Militar
— a politização dos quartéis:
um Exército deliberante
polemizando pela imprensa
em tom beligerante.
O Abolicionismo dos conservadores
tinha a oposição dos liberais...
Havia vanguardas cautelosas
e conservadores sediciosos...
e o paradoxo nada trivial
do conservador liberal...
e muita propaganda republicana
entre os descontentes fardados.
Liberais defendendo ideais
republicanos
e republicanos
exaltando reivindicações liberais.
Nada mais conservador do que um liberal
mais monarquista do que um republicano!
A alforria dos escravos
(sem a pretendida indenização...)
uniu os ressentidos
de todos os partidos.
Liberais estrategicamente conservadores.
Conservadores tacitamente republicanos,
políticos compondo e trocando
posições e funções nos gabinetes.
Crises, cisões, alas, facções,
fusões entre contrários,
adversários nos próprios partidos,
correligionários fazendo oposição.
Com a Proclamação da República
(um ato heroico de madrugada)
houve então a debandada:
conservadores e liberais
tornaram-se todos republicanos
(mantendo títulos de nobreza)
em novos grupos contrapostos
em dissidências figadais.
Cada partido em seu trono
com seu líder ou seu dono,
seu reduto eleitoral,
seu mandatário.
Assim o quadro partidário:
ninguém da Direita
todo mundo na Esquerda
“aliás, muito pelo contrário”.
Canto 42
OS DOIS BRASIS
“os dois Brasis, tão diferentes, estão unidos pelo
mesmo sentimento nacional e por muitos
valores comuns”.
JACQUES LAMBERT
I
Uma unidade nacional coesa e forte
e uma extrema diversidade regional.
Dois brasis, cara a cara
ou de costas um para o outro.
— um progressista e o outro, arcaico:
um com as raízes no século XVIII, o outro
democrático, fincado na modernidade.
Uma unidade crítica, mas firme
sustentada em nosso federalismo.
E, no entanto, há mobilidade social
contraposta ao coronelismo das elites.
Um equilíbrio de graves sutilezas,
resistências surdas e tolerâncias.
Haja pactos para uma governança!
Haja alianças e subterfúgios!
Os pactos são públicos e privados
numa promiscuidade de conchavos.
II
Os dois brasis são três, são muitos,
estão mas não são irreversíveis,
embora sejam — e são! — recalcitrantes
resistentes, em oposições cordiais
porque se dialoga e se negocia,
em que se muda pra ficar igual.
Resquícios de colonizações ainda recentes
numa geografia de flagrantes maniqueísmos,
de relações difíceis com os migrantes
criando tais desníveis e inferioridades
de assimilações forçadas e dissimuladas
de integrações por via do desenvolvimento
e não por decretos, pela instrução
e não se quer eliminar as diferenças
mas, a longo prazo — absorvíveis,
superáveis — todos estaremos absortos
a longo prazo, todos estaremos mortos
numa igualdade de sepultamento.
III
Numa diáspora nordestina e sulista
amalgamadora, fusionaria, centrifugadora
dos nortistas para o Leste e o Oeste
dos sulistas para o oeste e o nordeste
— os paus-de-arara querendo alforria,
os do sul buscando terras de cultivo.
Antes as monções e as bandeiras
do mar para o interior, escravizando
povos indígenas, buscando o Eldorado,
povoando, explorando, catequizando,
criando a sociedade dualista
de que ainda não nos libertamos.
Canto 43
O DITADOR DE TURNO
Em sua canhestra racionalidade
o Canalha vê a nacionalidade
como um protetorado:
faz discurso de sedução
apelando ao populismo.
Maiorias surdas e mudas
expostas aos chavões e refrãos,
artimanhas de seu cego patriotismo.
O Ditador é sempre viscoso e aderente
e prepotente e desequilibrado,
horrorizado com a possibilidade
de qualquer institucionalização
que limite a excepcionalidade
de seus poderes e humores.
Ele mesmo, o Ditador
se autoproclama
restaurador da Ordem
pela moralização da sociedade.
Está sempre aceso e acossado
abrindo espaços a destempo
impondo regras perceptíveis
mas nunca verdadeiramente
inteligíveis:
acatadas pelo medo e intimidação.
Falando sempre de um bem
inacessível,
pregando a virtude retórica
irreconhecível
de seu pretenso messianismo
mas vai logo recrudescer e perpetuar
em males que promete extirpar...
Apaixonado pelas crises
em que se sustenta:
ele não pode viver em paz.
Todo ditador porta uma cauda invisível
de sua inequívoca descendência de réptil
ou é um primata com um ímpeto assassino
e instinto de suíno.
Na mente inerme de uma minoria
privilegiada ou mal informada
— chaleira, puxa-saco —
pode haver alguma identidade
com ele.
Um ser serpentário
resvalando por territórios dominados,
demarcados pelo despotismo e o nepotismo.
É mais fácil corromper um regime
que mantê-lo sadio!
Mas o Ditador traz sempre (!!!)
o germe da (própria) destruição.
Canto 44
A FRAUDE ELEITORAL DE 1989
I – Os antecedentes
Os fraudadores vêm armados
de argumentos engenhosos
(que precisam ser desarmados)
baseados em lógicas, teoremas,
estratagemas e até superstições...
Armações, maquiavelismos.
Tecnologias e patriotismos...
II. A Eleição de 1989
Collor foi eleito pela fraude
eleitoral
no pleito de 1989
mas, afinal,
Lula foi o único beneficiário
(seguro) da armação
se não, de imediato
— no futuro imaginário.
O então candidato-operário
era a contraposição genuína
na disputa.
O “caçador de marajás” das Alagoas
— ele próprio o marajá em pessoa,
herói de novela, ícone de tecnologia
eleitoreira;
Lula, barbudo radical,
nordestino carrancudo
com cabelo africanizado
no maniqueísmo de TV.
Dois extremos programados
nos programas de televisão
— mais do que nos programas políticos,
que eram raquíticos
de textos
e de ideias,
jogados para as plateias
em horário obrigatório.
(Um purgatório...)
Palavras, mais que ideias.
Imagens mais que propostas
dos personagens.
Miragens, ventriloquia.
Dois radicalizados
com discursos ajustados
às circunstâncias.
III – Nada de revanchismo!
Era a primeira eleição direta
depois de vinte e cinco anos
de ditaduras e aberturas discretas
no processo de redemocratização.
Na terceira posição, Leonel Brizola,
ainda popular, ainda prestigiado
líder nacional.
Qual o perigo?
Lula era emblemático.
Collor midiático.
Brizola, carismático.
A rejeição a Collor e Lula,
muito elevada por seus radicalismos
de direita e de esquerda
— prato cheio para a mídia
e para os marqueteiros.
Havia outros candidatos
naquele fatídico ano
dividindo o voto dos indecisos:
Aureliano, Maluf, Ulisses...
Representando forças vivas
da situação e da reação
no processo republicano.
IV – A tese...
O confronto (soturno) deveria ser,
tinha que ser
entre Collor e Lula,
no segundo turno.
O super-herói das Alagoas
contra o Sapo barbudo,
um defendendo o Mercado
- “prefiro ser o último dos desenvolvidos
a ser o primeiro dos subdesenvolvidos...” –
o outro proclamando-se terceiro-mundista.
Haveria ou não, nos bastidores,
nos corredores escuros do poder,
um pacto a ser cumprido?!
Como garantir a transição
sem o risco do revanchismo?
Quem garantia a anistia
e a cortina sobre o passado?
Quem poderia perturbar
o legado da transição democrática,
a garantia da continuidade,
da paz e da conciliação?
Haveria um pacto de silêncio
mas também de submissão
(infame) ao seu ditame:
que nenhum político pré-1964
saia ungido da eleição!!!
IV – O álibi
Na suposta fraude nacional
o álibi seria perfeito:
paulista não vota em gaúcho!
Afinal, todos sabem (?!)
Getúlio Vargas humilhou São Paulo
enterrou a Revolução Constitucionalista de 1932.
Brizola é gaúcho, logo...
Um ardil verossímil
apesar de imbecil.
Que me perdoem os paulistas
mas o povo – eu desconfio –
nem sabe (mais) quem foi Getúlio...
No páreo de candidatos
havia tantos paulistas
a dividir votos
no primeiro turno...
V – A apuração
Eu estava lá, cético, cismado,
acompanhando o cômputo dos votos
— seriam mais bem ex-votos
de eleitores esperançosos
em alguma transformação...
Era no Centro de Convenções de Brasília
o quartel-general do Tribunal
Superior
Eleitoral,
quando as apurações eletrônicas
chegavam sucessivamente
deste país-continente,
sem qualquer ordem ou preceito.
Nada de contagem de voto na mesa,
urna a urna, em cada sessão,
município por município,
estado por estado... Boletim
assinado por mesário...
Coisa arcaica, superada...
— riam os correligionários.
Havia então um valão de votos
de qualquer procedência
num cômputo aleatório.
Na Presidência do TSE
um mineiro
enquanto os votos de Minas
atrasavam. Coincidência.
Os votos chegavam pela rede,
contados em conta-gotas,
painéis mostrando apurações
parciais, indefinidas,
para a estranheza dos analistas.
VI – O impasse
Um empate técnico Lula-Brizola
pelo segundo lugar
contrariando a previsão.
Os votos de Brizola e de Lula
levavam ao empate e ao impasse.
Houve repasse de votos
de Brizola para Lula
nos redutos brizolistas na divisa
de Minas Gerais com o Rio de Janeiro?
Seriam especulações de derrotado?
Complexo de perseguido, alienado?
Os votos que (presumivelmente) sumiam
eram os de Minas Gerais...
Não havia mais Jornal do Brasil
para uma apuração paralela...
Haveria o PT de permitir
a recontagem de votos
— colocar em dúvida a vantagem
de seu candidato?
Um esquema de eleição já decidida?
VII – O Quixote dos Pampas
Brizola seria um Quixote alucinado
contra os moinhos de vento
do Supremo Tribunal Eleitoral?
Só ele enxerga as artimanhas
de tamanhas majestades!?
As mesmíssimas forças governam
por gerações e gerações,
— terrível herdade!—
nos bastidores,
não importando os resultados das eleições,
compondo as maiorias
da governabilidade.
VIII – Crônica de uma morte anunciada
Todo mundo se lembra
daquele debate final
— COLLOR X LULA –
frio e premeditado
com roteiro e desenlace
preconcebidos.
Até a TV Globo (agora)
reconhece por escrito
que houve uma “edição”
— não falemos de manipulação —
do compacto do debate
para influir na eleição.
De quem foi a decisão?
Ainda estão discutindo.
Veio depois o confisco
dos depósitos bancários,
o arroubo perdulário
do primeiro mandatário,
os amores interministeriais
e favores de secretários.
Francisco Rezek
— que surpresa! — nomeado
ministro do Exterior..
Em que país civilizado
o juiz de uma eleição
aceita cargo de confiança
de uma das partes, vencedora?
Não o critico por isso
— nem a favor nem contra
aliás, muito pelo contrário —
posto que sendo culto e preparado
merecia o posto. Repito apenas
o que corria a boca pequena.
Maledicências...
Dizem ainda que, salvando-nos
das cinzas, tivemos
a abertura da economia.
Quem diria!
Sempre um programa modernizador
vem pelas mãos dos mais retrógrados,
diz-nos qualquer historiador...
Foram os conservadores e não os liberais
que, na Monarquia, faziam concessões
entendidas como avanços sociais...
(Mas sempre foi assim
ao longo de nossa história:
enquanto os radicais se matam
por ideias e não avançam,
o reacionários concedem,
transformam, sem grandes mudanças...)
IX– Perguntar não ofende
Especulações, fantasias, elucubrações?
Por que não responder às questões?
Onde estão os arquivos das eleições?
Qual o destino daquelas urnas suspeitas?
Os votos que teriam migrado
do Brizola para o Lula
— conforme a suspeita do Caudilho –
que rumo tomaram no segundo turno?
Alguém já comparou os escrutínios?
Eleições fraudulentas no Brasil?!
Quem vai acreditar?!
Nem nos Estados Unidos
onde se sabe votar e contar votos!!!
Nem na disputa Bush e Al Gore...
Será que um programa de computador
transforma a linguagem solerte
e dúbia de um político profissional
em mensagem objetiva e preclara?
Se o sistema eleitoral
sempre foi enviesado
pode o computador
anular os subterfúgios
e inibir os conchavos?
O programa de computador
orienta a desorientação partidária?
Desentorta o discurso demagógico
e eleitoreiro da versão marqueteira?
Inibe o abuso de poder?
Coíbe o uso da máquina administrativa?
Impede a compra de votos?
Denuncia os candidatos-laranjas?
Os caixa dois, caixa três, quatro
e o escambau?
O computador acaba
com os eleitores fantasmas?
Só o programa de computador
é inviolável, indevassável, incorruptível?
Só o programa partidário
é fictício, enganoso e mentiroso?
O computador ilumina consciências
e orienta a melhor escolha?
O computador acaba
definitivamente,
para sempre,
com os escrutínios fraudulentos?
Controla as arrecadações coercitivas
e as associações com o crime organizado?
X – A contra-argumentação
Se já invadiram contas bancárias
e sumiram com somas absurdas...
Se já fizeram remessas clandestinas
para tantos paraísos fiscais...
Se os sistemas de segurança
são inseguros até no Pentágono!
Se for assim, então, sem dúvida
o Barão de Pindaré Júnior
vai declarar o seu voto
nas vindouras eleições
— mesmo sendo o voto secreto— :
vai votar no Computador.
Eu não sei de nada,
e só falo de ouvido.
Para ser confirmado
que procurem o Meritíssimo
agora protegido
na imunidade de seu cargo.
Eu, pelo contrário, o defendo
por sua clarividência.
Acredito piamente
na ignorância dele:
ele nada sabia,
como acredito em fadas,
duendes e no chupa-cabra.
Só fez o que era possível
naquela circunstância
— alguém que sinta repugnância
contra ato tão patriótico.
Collor deu no que deu
e se... Sei lá, foi-se
o que era doce
e passados todos esses anos
de democracia representativa
— mais representativa que democrática —
estamos na plenitude republicana.
XI - EPÍLOGO
País sem memória, por opção.
Dados existem. Onde estão?
Foi há tão pouco tempo
mas ninguém se lembra mais.
E eu a abrir túmulos,
a falar de urnas sepultadas.
Que os cadáveres da ditadura
elevem suas vozes
e saiam da escuridão.
Que os algozes na sinecura
que presidem esta Nação
locupletados no Estado
sejam um dia julgados!
Voltem os mortos às suas tumbas,
os documentos secretos saiam dos porões.
A democracia consentida
apaga qualquer ferida
apesar das cicatrizes.
Que a paz não seja um pacto
de conciliação e olvido,
mesmo que não haja perdão,
nem justiça, nem reconciliação
com o regime maldito
que ainda não superamos.
Tenho dito.
Canto 46
CRISE
Tem um anti-herói – Macunaíma – levitando no Congresso.
Os intelectuais estão mudos, perplexos,
monologando sobre a utopia corrompida,
relendo manifestos. Paquidermes ressentidos.
Os políticos sangram, desencantam
(quem foi estilingue virou vidraça)
sugam as entranhas do poder
num inferno a céu aberto.
Em posições trocadas, os canalhas
em espelhismos e disfarces sutis
exorcizam fantasmas redivivos
— ou seriam mortos-vivos
canibalizados.
Um batráquio atônito discursa
para as colunas surdas
para ouvir o próprio eco.
Não, não e não!!! é o bordão
dos acusados. Ato falho, coerção
enquanto os jornalistas sádicos
regozijam-se, triunfantes
sobre os escombros.
Os urubus planam ávidos
sobre a esplanada desconcertante
e os ratos roem os alicerces
precários.
Os banqueiros estão blindados
mas assustados.
Os militares cegos, os religiosos surdos
e os juízes calados.
A população aturdida
— enquanto a lama medra -
não entende mas pressente
a véspera do nada.
Canto 47
CAIXA DOIS E METÁSTASE
Porque sempre foi assim,
não tem por que ser sempre assim.
Acuado pela crise
o presidente Lula orquestrou
a tese do Caixa Dois
como um vício republicano
— a compra de votos —
trocando o efeito pela causa:
um determinismo político
execrável mas justificável.
Instado a pronunciar-se
depois da queda de ministros e assessores
e de aliados envolvidos com os escândalos,
declarou-se surpreso e traído;
afirmou que cortaria da própria carne
se preciso fosse
como a oferecer outro dedo ao sacrifício
— mas não apontou culpados.
Quando a crise arrefeceu
saturada e alastrada pelos partidos
da base aliada e entre adversários,
pelas empresas estatais e fundos de pensão
no escambo e escambau,
numa trama tentacular e cancerosa
o presidente ofereceu cargos
e liberou verbas aos políticos
e admitiu que houve erros
mas nunca-jamais corrupção
em seu governo
(dizendo ser essa a prática dos anteriores)
logo aplaudido pelos acusados
e ameaçados de cassação de mandatos.
Mas a crise se alastra
subterrânea e sub-reptícia
e os cadáveres saem dos arquivos
para as manchetes dos jornais
na metástase do poder corrompido,
nos estertores de um sistema político
falido.
[Ainda sonho com o parlamentarismo
com partidos estáveis, fidelidade partidária,
com uma nova Constituinte,
com uma verdadeira reforma política!!!]
Canto 48
POVOS DE RUA
“... minha percepção de rua: fio de ligação
entre a matéria e o espírito”.
CRISTINA DOS SANTOS PEREIRA
A rua é a pátria dos excluídos,
dos povos de rua, desalojados
dormindo seminus nas calçadas
procriando e constituindo
famílias errantes e carentes.
O Brasil é uma rua só
que começa em Salvador
continua em Maceió e Fortaleza
chega ao Rio de Janeiro
passa por Curitiba e Belo Horizonte
estreitando-se em Belém do Pará
e terminando em Porto Velho
e Cuiabá, além de Brasília.
Uma rua só e sem teto
em que transitam hordas
humanas, dejetos, povos deserdados
da sorte, os desafortunados
os expulsos, uma coorte
de humilhados, desempregados
catadores de papel, travestis
prostitutas e proxenetas
bêbedos, drogados, doentes
nas sarjetas, debaixo de marquises.
Uma rua que começou em Lisboa
com os seus enjeitados, mendigos
meninos sem pais, abandonados
às portas das igrejas, degredados.
Uma rua que começou nos porões
das galés dos escravos d´África ,
nas ralés dos imigrantes e exilados,
na trilha dos retirantes da seca,
do latifúndio e da ignorância.
Famintos mas plenos de fé,
loucos mas ainda esperançosos,
em andrajos, mas até orgulhosos,
exigindo respeito e dignidade
no lúmpen, mas em liberdade.
Biscateiros, vendedores ambulantes
malandros, aleijados, boêmios inveterados
meninas estupradas, transeuntes
feirantes em pernoite, notívagos, vagabundos
as vítimas de assaltos e chacinas
— e os fanáticos, pregadores de Bíblia na mão
anunciando o fim dos tempos.
Canto 49
VIOLÊNCIA URBANA
Oh sobressaltos notívagos, assaltos
temores, necessidades inconformadas!
Ferrolhos, grades, armadilhas
trancas, retrancas, alarmes
portões e treliças, pregos, alçapões
pés-de-cabra, machados, punhais.
Levantam-se muros e barricada
desespero, imprecações.
Insumos, consumos, exsumos sem remissão.
Mil, dez mil igrejas tributadoras
de estardalhaço
no desassossego de nenhuma salvação.
Canto 50
PAÍS INCONCLUSO
“Já desisto de lavrar
este país inconcluso
de rios informulados
e geografia perplexa.”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
I
Eu, nem tanto.
É uma lavra complexa
em terras sediciosas
e arbitrárias.
No entanto
sedutoras.
Capitanias hereditárias
(promissoras!)
atávicas, refratárias
à transformação
senão pela ação
contestatária.
Que assim seja!
Pela lavra reflexa
da palavra incidente
sobre o país obtuso
e demente.
Com bisturis e acicate
na visão de gabinete
em versos brancos
verdes e amarelos.
Haja ira e ironia!
II
Brasil que o poeta
percebe envergonhado,
de paletó e gravata,
numa leitura de enfado.
Uma geografia perplexa
de estados maiores
e províncias menores
numa política
de supremacias
e inferioridades
sob o disfarce
federativo.
Depois da Guerra, alçado
aos seus questionamentos.
Depois de Getúlio Vargas
e antes do mesmo Getúlio.
Claros enigmas, eleições:
pretensas mudanças
informuladas, atadas
a estruturas pensas
a conchavos subterrâneos
a acordos de aparência
sujeitos às fraturas
de qualquer dissidência.
“Lutar com palavras
parece sem fruto”.
Rosa do Povo, cancerosa
em que o poeta
protesta mas desanima
assina o livro-de-ponto
depois
aperta o detonador
do poema
e desperta
as consciências
na penumbra surda
das massas, no aconchego
das musas.
Canto 52
DIACRÍTICA
Parece que a História não se dá no tempo
sucessivo, mas em tempos paralelos,
— contraditórios —
sem antecedentes e consequências
se no tempo, fracionário e arbitrário
se no espaço, disperso e controverso
contraposto, sem fim e sem princípios
sujeito às ideologias
que desviam e mascaram
os sentidos.
Que História é essa do Brasil?
Do colonizador travestido de missionário?
Do aristocrata fantasiado de revolucionário?
Parece que a História é carente de exemplos
— não tem respostas nem explicações —
nada que mitigue nossas aflições.
Não conhecemos heróis,
nem mártires, nem próceres
mesmo aqueles condestáveis
imortalizados em monumentos marmóreos
desconhecidos dos passantes.
Nada de bonapartismos, peronismos
nunca um Simón Bolívar,
jamais um Gandhi
Tiradentes, Pedro II, Caxias...
Todos são canibalizados
ou carnavalizados
isso é muito bom, muito ruim.
Só por decreto reverenciamos
a Bandeira Nacional
fora da Copa do Mundo.
Preferimos as estátuas de orixás
as iemanjás
os cristos-redentores
as formas mais abstratas
— que são as mais inteligíveis
porque desmitificadas.
Os poderes, mal distribuídos
os direitos aos aquinhoados
os políticos revezam-se
nas sinecuras
os do judiciário protegem-se
em armaduras eternas
por menos que durem
os religiosos
numa impostura de funerária
e os militares, quando aquartelados
— guardiões das instituições —
sentem saudades do poder.
Nos períodos de maior rigor
há mais desfiles militares
quando há mais miséria e medo
— e infortúnio —
acontecem as procissões e romarias.
Nessa hierarquia festiva
Senhor, a sociedade se organiza:
na intenção religiosa fica a Semana Santa,
na direção cívica cabe o 7 de Setembro
e, como ninguém é de ferro, rompem-se
as amarras
soltam as frangas
no Carnaval de todos os disfarces.
Tudo indica, Senhor, que o padrão
seja a alteridade: as negras podem ser
evangélicas e as brancas mães-de-santo
sem causar espanto
ou confusão.
E mais: que experimentam a ambivalência
nas relações sociais – um cientista de renome
— Roberto Da Matta — diz mais:
que podem ter duas convicções opostas
— uma em casa, outra na rua.
Em casa são conservadores, autoritários,
na rua, tolerantes, liberais
e coisas mais: condescendência aos amigos
e rigor para os demais.
Um povo que idolatra com escárnio
que louva enquanto blasfema
é o que se pode dizer
fora dos holofotes.
Canto 53
SAMBAQUIS
Que povos dizimados,
que línguas extintas
que marcas ardentes
povoam as cavernas
de paredes imanentes
nos vestígios rupestres
em São Raimundo Nonato?
Que vozes ressoam
com os ventos passantes
entre ruínas reluzentes
de nossos antepassados
na Serra da Capivara?
Que nos revelam
as cerâmicas silentes
dos povos marajoaras
desaparecidos, ausentes?
Verdadeiramente
de onde vieram?
De muitas partes
certamente.
Quando? Por onde?
De períodos remotos
por caminhos ignotos.
De quem eram as ossadas
sepultadas em urnas funerárias
em sambaquis enterrados?
Que relações com povos andinos
com civilizações asiáticas
com homens pré-históricos?
Que palavras permaneceram
daquelas línguas isoladas
esquecidas, soterradas
pelo tempo ou dizimadas
pela civilização?
Que dizem as pinturas
e figuras das cerâmicas
de Santarém?
Que cerimônias ensejavam?
Que pensavam e sonhavam,
que costumes havia
como sobrevivia no cotidiano
o homem destas paragens
dez, dez mil, trinta mil
anos atrás?
Que história haveria
na pré-história
e que desvenda
a sua arqueologia?
Cabral surpreendeu-se com ossos
nos lábios dos indígenas — os tambetás —
sem entender as origens
e nenhum significado.
E os muiraquitãs zoomorfos
a que serviam?
Que Champolión haverá de decifrar
os hieróglifos
da pedra lascada do Ingá?
Que mitos, que ritos
revelam os grafismos
e antropomorfismos de um Maracá?
Que imagens ainda guardamos
nas faces errantes
que traços antigos
sobrevivem na gente? |